terça-feira, 23 de novembro de 2010

Breves considerações ao artigo 85, caput, e do seu parágrafo primeiro, do Projeto (PLS 166/2010) do Novo Código de Processo Civil brasileiro

Uma das mais tormentosas questões que assolam diariamente os pedidos de gratuidade de justiça, no judiciário brasileiro, gira em torno de tal requerimento ser veiculado por simples afirmação ou se junto desta há necessidade de “prova” da condição de hipossuficiente. A partir deste momento, o jurisdicionado hipossuficiente começa a passar por uma série de “sofrimentos processuais”, pois há juízes que exigem prova esgotativa do estado de precariedade financeira, embora outros, felizmente, se contentem (em harmonia com a Constituição de 1988) com a mera afirmação. Todavia, ao se ler a redação do artigo 85 (caput) e seu parágrafo primeiro do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, a impressão que se tem é que os membros da Comissão ou não tinham conhecimento dessa séria questão ou preferiram optar pela preservação dos interesses patrimoniais do Estado, haja vista que resolveram, por intermédio do parágrafo primeiro daquele artigo, regular expressamente e tão-somente a averiguação da insuficiência de recursos do requerente, esquecendo da regra da mera afirmação de hipossuficiência. Reproduzo a seguir o artigo 85 do Projeto (PLS 166/2010) do Novo Código de Processo Civil:

“Art. 85. A parte com insuficiência de recursos para pagar as custas e as despesas processuais e os honorários de advogado gozará dos benefícios da gratuidade, na forma da lei.
§1º O juiz poderá determinar de ofício a comprovação da insuficiência de recursos de que trata o caput, se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos requisitos legais da gratuidade de justiça.
§2º Das decisões que apreciarem o requerimento de gratuidade de justiça, caberá agravo de instrumento, salvo quando a decisão se der na sentença.”


Na verdade, o mencionado parágrafo primeiro passará a ser – se aprovado pelo Poder Legislativo naqueles termos originais -, o sustentáculo para aqueles magistrados que entendem equivocadamente (inconstitucionalmente) que o requerimento de gratuidade precisa ser exaustivamente provado. Ou seja, o mencionado parágrafo primeiro será a base dos indeferimentos dos pedidos de gratuidade de justiça ao sabor da discricionariedade (quiçá arbitrária) judicial, associada ao conceito jurídico indeterminado, representado pela expressão “insuficiência de recursos”.
Ora, num país de excluídos, como o nosso, no qual pagar custas processuais e honorários de advogado é ainda um luxo de uma minoria, causa espécie que uma Comissão de notáveis processualistas deixe de levar em consideração as dificuldades enfrentadas pelos jurisdicionados hipossuficientes na busca de tutela dos seus direitos, máxime do seu direito fundamental de acesso à justiça.
Lembro aos membros da Comissão do Senado Federal, que ora se debruçam sobre o conteúdo do Projeto do Código de Processo Civil - mais parecido com um Reformão do que propriamente com um novo código, máxime porque, pelo que noto, se me afigura mais uma reprodução de quase 80% (oitenta por cento) do paradigmático Código Buzaid – que a construção de um Código de Ritos, a qual deve se pautar obrigatoriamente pelo seu compromisso com a realização dos direitos fundamentais da cidadania, dentre eles o acesso à justiça e ao direito é imperativo indispensável sem o qual de nada vale um novo Código ou mesmo de um Reformão que lhe faça as vezes.
É claro que a fim de se efetivar o acesso à justiça e ao direito há que se procurar canais hábeis que facilitem seu exercício, como, por exemplo, a técnica da mera afirmação de hipossuficiência financeira. Recordo-me de que, numa das cinematográficas audiências públicas da Comissão do Anteprojeto, ocorrida na cidade de Curitiba, no ano corrente, um dos seus membros não se cansou de falar do princípio da isonomia, segundo o qual o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil tencionava que os jurisdicionados fossem tratados de forma igualitária.
Mas dessa afirmação me vem a indagação: será que se um magistrado, por exemplo, do Nordeste brasileiro se contentar com a mera afirmação de hipossuficiência e o outro da Região Sul brasileira, compreender que não basta a mera afirmação, mas associada a esta deve haver a juntada de vários documentos acerca da condição financeira do requerente, estará existindo aí tratamento igualitário pelo judiciário no que tange às cidadãos de regiões diversas do território brasileiro? Penso que não, daí a existência das regras facilitadoras ao deferimento da gratuidade de justiça constantes do artigo 4º da Lei nº 1.060/1950.
É por demais sabido, especialmente pelos mais velhos, que décadas atrás houve toda sorte de percalços do cidadão hipossuficiente brasileiro, chegando mesmo às raias do constrangimento à sua pessoa com a malfadada e autoritária exigência de um “atestado de pobreza”, obtido junto à autoridade policial. A pobreza era naqueles tempos – se é que não continua a sê-lo – um caso de polícia.
Com promulgação da Lei 1.060/1950, e das suas posteriores modificações infraconstitucionais, houve um tratamento mais humanitário aos cidadãos desprovidos de recursos financeiros, que poderiam, a partir daquele instante, requerer a concessão (efetivação) da gratuidade mediante mera afirmação de dita condição. Através da Constituição da República de 05 de outubro de 1988 vem o coroamento da gratuidade de justiça com a sua constitucionalização.
No entanto, ainda, são encontráveis todos os dias na labuta forense nacional decisões judiciais que visualizam a gratuidade de justiça com os olhos do passado, teimando em requerer exaustivamente uma prova de índole negativa.
Existirão aqueles que irão afirmar que não haveria necessidade do Anteprojeto do Código Processo Civil detalhar o que já está previsto no artigo 4º da Lei nº 1.060/1050, o que seria uma desnecessária obviedade. Sim, seria até pertinente aludida assertiva se não fosse o referido Anteprojeto, agora projeto, recheado de obviedades do início ao fim de sua redação. Sem dúvida afirmar que “a parte com insuficiência de recursos para pagar as custas e as despesas processuais e os honorários de advogado gozará dos benefícios da gratuidade de justiça, na forma da lei” é uma exemplar obviedade, mormente em face das conquistas históricas produzidas pela Lei 1.060/1050 e das suas posteriores modificações. Mas o problema não é a obviedade em si. Muitas das vezes ser óbvio é um ótimo artifício linguístico a bem de incutir uma ideia fundamental.
Ou seja, se era para reproduzir o texto e o conteúdo da Lei nº 1.060/1950, que se repetisse uma das suas partes fundamentais, quais sejam, as normas facilitadoras do reconhecimento da gratuidade de justiça, via mera afirmação de hipossuficiência, especialmente porque mencionada regra se insere como uma forma de efetivação do direito ao acesso à ordem jurídica justa. Pouco importa afirmar o direito à gratuidade de justiça se no mundo vivido sua concessão padece de toda sorte de obstáculos à sua efetivação. Ao invés da Comissão do Anteprojeto ter se preocupado com a regra de facilitação do reconhecimento da gratuidade de justiça, reproduzindo-a, ainda que, de forma repetitiva e cansativa - nunca é cansativo afirmar e reconhecer um direito fundamental expressamente contemplado por nossa Lei Fundamental de 1988 – preferiu se esmerar num parágrafo que tem por preocupação principal indeferir (ainda de forma virtual) o requerimento de gratuidade de justiça.
Lembro, também, que, de uma maneira geral os Códigos de Ritos determinam uma grande influência no imaginário dos juízes – se está na código há de ser obedecido – o que favorece e estimula mudanças nos comportamentos jurisprudenciais, especialmente no tange ao desenvolvimento do direitos humanos no âmbito do direito processual civil.
Tivesse a Comissão de juristas de escol do Anteprojeto do intitulado Novo Código de Processo Civil reproduzido a regra constante do artigo 4º da Lei nº 1.060/1950 sobre a mera afirmação de hipossuficiência, ainda que na esteira da obviedade, teríamos dentro de um Código de Processo Civil, a definição da regra indispensável de facilitação do reconhecimento da gratuidade de justiça, o que, sem dúvida, afastaria o tratamento desigual entre os jurisdicionados hipossuficiente de todo os país, visto que alguns magistrados se contentam com a simples afirmação e outros, em sentido oposto, investem na exigência, o mais das vezes desumana, da prova exaustiva da condição de hipossuficiente, olvidando que a regra é o deferimento da gratuidade de justiça frente a simples afirmação e a exceção é o seu indeferimento nesse país de excluídos.
Quanto ao parágrafo segundo do artigo 85 do Projeto (Anteprojeto), deixo de analisá-lo, tendo em conta que sua redação parece pacificar, pelo menos numa primeira análise, o debate sobre a natureza da decisão concessiva da gratuidade de justiça e do seu adequado recurso.
A título de contribuição ao debate do Anteprojeto, do Código de Processo Civil, agora projeto, em trâmite, no Congresso Nacional, creio que uma redação que melhor se coadunaria com a acesso à ordem jurídica justa e aos direitos humanos em sede processual, especialmente no que pertine ao direito fundamental à gratuidade de justiça em um novo CPC, louvando-se nas conquistas históricas da redação da Lei nº 1.060/1950 e de suas posteriores modificações, seria a seguinte:

“Seção IV
Gratuidade de Justiça
Art. 85. A parte gozará do direito à gratuidade de justiça mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.
§1º O juiz poderá determinar de ofício a comprovação da insuficiência de que trata o o caput, se houver nos autos elementos que demonstrem a ausência dos requisitos legais da gratuidade de justiça.
§2º Das decisões que apreciem o requerimento de gratuidade de justiça, caberá agravo de instrumento, salvo quando a decisão se ser na sentença.”

Quanto ao parágrafo segundo do artigo 85 do Projeto (Anteprojeto), deixo de analisá-lo, tendo em conta que sua redação parece pacificar, pelo menos numa primeira análise, o debate sobre a natureza da decisão concessiva da gratuidade de justiça e do seu adequado recurso.
Foi meu objetivo apenas contribuir, a título de uma crítica construtiva, com a indicação de alguns subsídios opinativos - verdadeira sugestão - para o afeiçoamento do instituto da gratuidade de justiça, a ser implementado num Novo Código de Processo Civil, máxime porque se trata de um direito fundamental do cidadão brasileiro e não uma benesse concedida segundo o humor e a ideologia dos nossos órgãos jurisdicionais.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A afirmação de hipossuficiência no pedido de gratuidade como requisito para a sua concessão e a caracterização da hipossuficiência do requerente

Resumo: O presente artigo versa sobre o direito fundamental à gratuidade de justiça no ordenamento jurídico-brasileiro, especificadamente, no que tange à afirmação de hipossuficiência, constante do artigo 4º da Lei nº 1060/1950, bem como da caracterização da hipossuficiência do ponto de vista financeiro.

Palavras-chave: direito fundamental, gratuidade de justiça, afirmação de hipossuficiência, caracterização da hipossuficiência financeira do cidadão

Abstract: The present article deals with the fundamental right to gratuitous justice in the Brazilian-judicial regulation, especially concerning lack of citizen’s financial means as expressed in the article 4th of Law no. 1060/1950, as well as the characterization of its state of financial necessity.

Keywords: fundamental right, gratuitous justice, affirmation of hyposufficiency, characterization of citizen’s financial hyposuffciency.




“Não bastaria à Constituição instituir o Judiciário e disponibilizar medidas ao cidadão para defender seus interesses se não levasse em consideração a real situação social, onde o nível de pobreza é altíssimo e as despesas com o processo podem inviabilizar o acesso à jurisdição. Num país em que milhões de pessoas vivem em estado de extrema miséria é preciso assegurar aos necessitados o direito de demandar perante o Poder Público, sob pena de, assim não o fazendo, excluí-los do processo democrático e do direito de participação – mais do que isso, do direito instrumental (garantias) de defender seus interesses em juízo; seria, enfim, negar aos pobres a eficácia dos direitos conferidos pela Constituição.” (Francisco Gérson Marques de Lima. Fundamentos Constitucionais do Processo (sob a perspectiva da eficácia dos direitos e garantias fundamentais). 1ª edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2002, p. 208-209).

Volta e meia nos deparamos, para não dizermos frequentemente, com indeferimentos de pedidos de gratuidade de justiça totalmente alheios à vontade da Constituição de 1988 e do próprio ordenamento infraconstitucional, efetivador desse direito fundamental. Não é incomum constatarmos, no dia-a-dia forense, decisões judiciais que criam uma série de dificuldades – diga-se de passagem, inconstitucionais e ilegais – à concessão desse direito constitucional aos cidadãos brasileiros. Muitos desses indeferimentos de gratuidade de justiça primam por uma visão anacrônica da interpretação constitucional, bem como atentam contra a dignidade da pessoa humana, máxime diante de uma realidade brasileira marcada pela exclusão social e econômica de grande parte de nossa população. Frente a esse quadro de injustiça social, muitos magistrados teimam em ver o instituto da gratuidade de justiça como uma medida excepcional, que deve necessariamente ser “provada”, quando não mesmo exaustivamente “provada”, desconsiderando a presunção legal decorrente da mera afirmação de hipossuficiência positivada pelo consumidor-jurisdicionado (artigo 4º da Lei 1.060/1950). Há mesmo magistrados que (in)compreendem o instituto da gratuidade como um mero benefício governamental, uma dádiva do Leviatã, restringindo sua concessão apenas àqueles que, aos seus olhos, lhes parecem miseráveis. Nada mais anacrônico e desumano do que considerar o direito constitucional à gratuidade de justiça do ponto de vista de um favor estatal e pressupor (erroneamente) que a sua concessão esteja atrelada tão-somente à indigência de seu requerente.
Visto este panorama e a bem de melhor nos situarmos no instituto da gratuidade de justiça, é preciso que nunca olvidemos que o fundamento maior para o seu deferimento está na Constituição da República de 1988, precisamente no seu inciso LXXIV do artigo 5 º, a dizer:
“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”
É a partir do inciso constitucional acima que deverá o julgador se debruçar inicialmente para o enfrentamento do pedido de gratuidade de justiça. Mas, para isso, um alerta faz-se indispensável, qual seja, que a apreensão do sentido normativo-constitucional do inciso LXXIV do artigo 5º da CRFB/88 não pode nortear-se tão-só pela exegese literal do seu dispositivo e por uma suposta clareza de seu texto. Alerta esse dirigido nomeadamente aos desavisados que entendem necessária a comprovação da insuficiência de recursos pelo requerente, tendo em conta tão-somente a literalidade do texto constitucional. Já na primeira metade do século passado, Carlos Maximiliano, ministro do Supremo Tribunal Federal, na sua clássica obra Hermenêutica e Aplicação do Direito – de leitura obrigatória a todos os operadores jurídicos, em que pese alguns vergonhosamente nem conheçam o seu título ou mesmo seu autor– já punha sob reservas o apego apenas pela exegese verbal do texto legal. Nesse sentido, o mestre gaúcho já dissertava na primeira metade do século XX, in verbis:

“O processo gramatical, sobre ser o menos compatível com o processo, é o mais antigo (único outrora). “O apego às palavras é um desses fenômenos que, no Direito como tudo o mais, caracterizam a falta de maturidade do desenvolvimento intelectual. No começo da história do Direito poder-se-ia gravar esta epígrafe – In principio erat verbum. A palavra, quer escrita, quer solenemente expressa (a fórmula), aparece aos povos crianças como alguma coisa de misterioso, e a fé ingênua atribui-lhe força sobrenatural” (1). Em Roma empregavam-na para deslocar, por uma espécie de sortilégio, as messes de uma seara para a outra, e também para fazer os deuses abandonarem uma cidade sitiada. Precisamente os povos mais atrasados, de linguagem menos culta, apegam-se aos vocábulos; o emprego obrigatório das fórmulas consagradas corresponde a um grau primitivo de civilização. Prevalece a crença no fenômeno exterior; ora a palavra é aquilo que aparece como suscetível de apreensão, imediato; o pensamento é indivisível, mediato. Preferem-se espíritos cultos, emancipados”[1]

Todavia, mesmo com o alerta doutrinal de Carlos Maximiliano, feito nas primeiras décadas de nossa república, muitos juízes brasileiros, já agora no século XXI, sob a égide da Constituição cidadã de 1988, permanecem atrelados a uma leitura meramente literal do texto constitucional, singularmente em se tratando do direito fundamental à gratuidade de justiça. Ao realizarem a leitura do LXXIV do artigo 5 º do Texto Fundamental de 1988 impressionam-se com a sua proposição final “aos que comprovarem insuficiência de recursos” e passam a exigir indevidamente que os requerentes desse direito façam prova, diga-se de passagem, de índole negativa, de uma situação jurídica de hipossuficiência, indo com tal proceder na contramão do desenvolvimento dos direitos fundamentais. Analisando o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, no início da década de 90, o jurista e o maior processualista vivo no Brasil, José Carlos Barbosa Moreira, já dava mostras da incompatibilidade de uma interpretação literal daquele dispositivo constitucional em face da promoção dos direitos fundamentais do cidadão hipossuficiente financeiramente. Reproduzimos as palavras do insuperável mestre fluminense e que sirvam de exemplo aos desavisados e adeptos da exegese literal, ao modo da superada Escola da Exegese, em matéria de pedido de gratuidade de justiça, nessa primeira década do século XXI, in verbis:

“Sucede que alguns estão pretendendo vislumbrar no texto constitucional um sinal de retrocesso, na medida em que interpretam literalmente a cláusula da Constituição de 1988, segundo o qual o Estado prestará assistência aos que comprovarem insuficiência de recursos. Dá-se ao texto uma interpretação literal, para concluir-se que a Constituição de 1988 teria revogado aquela disposição introduzida pela Lei n. 7.510, que dispensava a comprovação. A mim não parece razoável. Ela peca por ser estreitamente literalista. É óbvio que a Constituição de 1988 jamais pretendeu restringir a concessão do benefício; ao contrário, ela quis ampliá-lo. Com todos os seus defeitos, é uma Constituição marcada pela preocupação social. É possível que em alguns pontos, tenha ficado aquém do que devia, e é até possível também que, noutros momentos, ela tenha tido o seu quê de utópica, mas importa: o fato central, a verdade inquestionável, é que ela procurou assegurar o avanço da comunidade brasileira no sentido de uma organização social mais equânime, menos marcada por desníveis intoleráveis; e não iria, certamente, dar marcha-à-ré nesse processo evolutivo. Temos de interpretar o texto com o espírito aberto ao sentido geral da Constituição. A meu ver, continua sendo perfeitamente possível, e até diria obrigatório, ao juiz aplicar a disciplina dada pela Lei n. 7.510. A Lei 7.510 pura e simplesmente considerou – digamos assim, atecnicamente, não importa – bastante como prova a declaração do interessado, prova essa sujeita eventualmente à prova do contrário.” [2]

Através das palavras sempre conscientes do Professor Barbosa Moreira, fica claríssimo que a proposição final do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988 não poder ser interpretada de forma literal, a exigir que o requerente do direito à gratuidade de justiça faça prova da insuficiência de recursos, sob pena da produção de retrocesso social em matéria de âmbito de acesso à ordem jurídica justa. Ou seja, o magistrado deparando-se com pedido de gratuidade de justiça, deverá contentar-se, inicialmente, com a mera afirmação de hipossuficiência, porquanto milita em favor do requerente uma presunção legal de legitimidade na sua afirmação. É claro que quando afirmamos ser uma presunção legal (de natureza relativa, juris tantum) não estamos negando o exercício da fiscalização do julgador sobre a veracidade do conteúdo da mera afirmação de hipossuficiência do requente. Muitas das vezes o pedido de gratuidade de justiça emanado de certa pessoa, por exemplo, um empresário, colocará sob forte dúvida a veracidade da afirmação de hipossuficiência. Mas, numa situação como essa, ainda assim, não deverá o magistrado negar de plano o pedido de gratuidade, sendo um direito subjetivo do requerente justificar aquela afirmação de hipossuficiência, não obstante sua condição aparentemente inviabilizadora daquele direito. É claro que num exemplo como esse, o juiz, visualizando que a situação financeira do requerente inviabiliza o pedido à gratuidade de justiça, deverá indeferi-lo, mas ainda assim de forma fundamentada. Contudo, tal exemplo é uma exceção à regra, pois dentro da normalidade econômica do cidadão médio, quem requer o pedido de gratuidade de justiça, presume-se carente de recursos até prova em contrário(§ 1º do artigo 4º da Lei 1.060/1950). Lembremos que o Brasil é um país de excluídos, onde o acesso à justiça ainda é dificultado à grande parte de sua população. O que não é dado ao poder judiciário e aos seus órgãos auxiliares é investigar certos detalhes irrelevantes ao deferimento da concessão desse direito fundamental, como, por exemplo, se o cidadão requerente é possuidor de bem de raiz, especialmente quando esse bem imóvel não apresenta nenhum indicativo de suntuosidade e trata-se do único bem daquele requerente. Aliás, não existe na legislação brasileira reguladora da gratuidade de justiça, tanto em nível judicial ou extrajudicial, nenhum requisito legal que impeça o deferimento de gratuidade de justiça aos que forem possuidores de bem imóvel. Sobre o suposto obstáculo ao deferimento da gratuidade de justiça às pessoas proprietárias de bens imóveis, o ilustre defensor público fluminense Rogério Nunes de Oliveira já se manifestou no seguinte sentido, in verbis:
“Através da deflagração do procedimento de dúvida, certos delegatários se valem de um expediente dotado de aparente legalidade para disseminar a exclusão dos desvalidos, achando fundamentos em subjetivismos e acasos, como o valor do imóvel, que será objeto de escrituração ou até mesmo o aspecto físico e o nível de instrução das pessoas que titulam o direito à justiça gratuita; pasmem, chegam ao extremo de orientar seus empregados a consolidar uma investigação minuciosa nas condições de moradia, nos afazeres e atividades cotidianas e em outras circunstâncias que gravitam em todo do dia-a-dia do cidadão que faz jus à realização gratuita do ato extrajudicial, no afã de retirar de alguma particularidade ou detalhe pessoal do sujeito algum pretenso indício que sirva de lastro para a recusa na efetivação do serviço.”[3]
E arremata Nunes de Oliveira:
“É bom que fique claro que a dúvida só se legitimará nos casos em que a gratuidade do ato ou do serviço postulado se revelar manifestamente descabida, não se prestando, por conseqüência, como instrumento de consulta ou de excitação do espírito de devaneio dos notários e registradores, e muito menos como política de criação de dificuldades para a venda de facilidades. Assim é porque, com grande freqüência, algumas pessoas passam metade de suas vidas juntando seus parcos recursos para a realização do sonho de compra da casa própria, experimentando várias privações pessoais e restrições no orçamento familiar, constituindo, desse modo, gritante injustiça cobrar-se de um cidadão desvalido o preço de uma escritura e de seu registro, além dos emolumentos pertinentes a certidões, reconhecimento de firma, etc. Dizer-se o contrário redundaria na imposição de mais um ônus a quem, sabe-se lá a custa de quais sacrifícios, conseguiu amealhar alguns poucos recursos financeiros para ser dono de um teto para abrigar a si e aos seus.[4] “

As passagens da obra de Nunes de Oliveira põem por terra a pretensão ilegítima daqueles que entendem ser inviável a concessão de gratuidade de justiça aos proprietários de imóveis, sobretudo, como enfatizado pelo ilustre defensor público fluminense, quando “algumas pessoas passam metade de suas vidas juntando seus parcos recursos para a realização do sonho de compra da casa própria, experimentando várias privações pessoais e restrições no orçamento familiar”.
Mas sendo questionada a presunção legal quanto à afirmação de hipossuficiência, qual seria o patamar financeiro a ensejar o deferimento judicial da gratuidade de justiça? Haveria a limitação à sua concessão a um número determinado de salários mínimos? Afinal, a lei reguladora da concessão de gratuidade de justiça limita o seu deferimento a certo valor? O juiz está, então, atrelado a algum valor previamente fixado por lei a fim de deferir a gratuidade de justiça?
Na verdade, a lei da gratuidade de justiça – Lei n. 1.060/50 – em nenhum momento elege qualquer valor ou número de salários mínimos para o deferimento da gratuidade de justiça, pois deixa ao magistrado verificar, no caso concreto, se estão presentes os pressupostos fáticos a bem da concessão da gratuidade de justiça. Entretanto, apesar da inexistência de uma determinação prévia de valores para a concessão de gratuidade, criou-se certo mito em alguns estados da federação brasileira, particularmente no primeiro grau de jurisdição, de que só se concede a gratuidade de justiça aos que não percebam mais de dois salários mínimos mensais. Em alguns estados, ainda exige-se, agregado ao máximo de dois salários mínimos, que o requerente não tenha bem de raiz. Absurdo tanto o suposto raciocínio da concessão da gratuidade de justiça ao valor máximo de dois salários mínimos como a ilegítima condicionante de ausência da qualidade de proprietário de bem de raiz. Acresça-se que nem mesmo a dimensão patrimonial - de índole econômica e não financeira - significativa do requerente pode, em tese, se traduzir em obstáculo ao deferimento da gratuidade de justiça, porquanto, conforme as palavras do ilustre membro do ministério público fluminense Guilherme Peña de Moraes, in verbis:
“(...) o interessado não é vinculado à alienação de bens integrantes de seu acervo patrimonial com vista à realização das custas do processo e dos honorários advocatícios, sendo dados essenciais para a verificação da situação econômica do pretendente os rendimentos e os bens consistentes em pecúnia ou facilmente conversíveis em espécie.”[5]
Dessa forma, não é pressuposto ao deferimento da gratuidade de justiça que o requerente seja indigente, mas que da situação de necessidade decorra a impossibilidade de não poder arcar com as custas do processo sem o sacrifício do sustento próprio e de sua família, o que é um situação completamente diversa da indigência. Não é porque, por exemplo, uma pessoa tenha ganhos de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) ou mais que lhe seja vedada o acesso à gratuidade de justiça. Tudo dependerá do quanto é despendido para sua mantença e de sua família. Enfim, tudo dependerá do caso concreto submetido à cognição do juízo. Na realidade, não há limites para a concessão da gratuidade de justiça. A decisão judicial que se paula por um limite prévio viola o direito fundamental ao acesso à ordem jurídica justa. Reiterando a inviabilidade de um valor máximo, previamente fixado, para a concessão da gratuidade de justiça, os ilustre professores Fredie Didier Jr. E Rafael Oliveira afirmam:
“Não nos parece razoável, contudo, o patamar que vem sendo estabelecido pela jurisprudência para o deferimento do benefício da gratuidade: alguns julgados vêm entendendo que somente será possível a concessão àqueles que perceberem até 5 salários mínimos por mês.
É perfeitamente plausível que alguém que aufira renda mensal superior a este patamar não tenha condições de arcar com o custo de um processo judicial. Basta pensar, por exemplo, no jurisdicionado que possui filhos em idade escolar e que custeia todas as despesas do lar. De outro lado, também é possível que alguém receba até 5 salários mínimos não possua quaisquer despesas processuais e, pois, possa arcar com o custo da demanda. A lei não exige parâmetros. Tudo se resolve, segundo entendemos, casuisticamente, aplicando o princípio da proporcionalidade.”[6]
Assim, o deferimento do pedido de gratuidade de justiça não se pauta por um cálculo matemático prévio,[7] mas antes por uma sensibilidade do juízo em verificar se o requerente é possuidor de numerário (natureza financeira) suficiente para despesas processuais, depois, é claro, de atendidos (descontados) todos os gastos para a mantença de sua família. Mantença da família, frise-se, aí, digna, e não sacrificadora da sua qualidade de vida, a bem de enriquecer ilegitimamente os cofres do Estado.
Assinalamos, ainda, que alguns juízes estaduais, no intuito de limitar ilegitimamente o direito fundamental à gratuidade de justiça, tentam se valer do artigo 789 da CLT e da Lei nº 5.584/1970, se apegando tais magistrados ao limite máximo de 2 salários mínimos legais indicados naquelas normas de índole trabalhista. Ocorre que tal limitação, dentro da melhor hermenêutica jurídica, só se aplica no âmbito do processo trabalhista, sendo inadmissível sua extensão aos processos judiciais da justiça comum (quer estadual, quer federal), onde imperam os princípios e as regras constantes da Lei nº 1.060/1950.

Conclusão:
1. A gratuidade de justiça traduz-se em direito fundamental do cidadão brasileiro hipossuficiente para o devido acesso à ordem jurídica justa, especialmente porque a realidade brasileira é marcada, ainda, por acentuada exclusão social e econômica de grande parte de nossa população, cujo acesso aos tribunais ainda não é adequado.
2. A interpretação do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, materializador da gratuidade de justiça, deve ser realizada em harmonia com todas as conquistas históricas originadas da Lei nº 1.060/1950 e de suas posteriores modificações, sob pena da produção do retrocesso social e jurídico.
3. O requerimento da gratuidade de justiça se embasa tão-somente na simples afirmação de pobreza (artigo 4º da Lei 1.060/1950), constante do corpo da petição inicial (artigo 4º da Lei 1.060/1950), não sendo necessária a prova de tal condição de hipossuficiência mediante documentos ou outras provas anexas à inicial.
4. A afirmação de hipossuficiência parte de uma presunção (relativa) reconhecida pela Lei nº 1.060/1950 (especificadamente do seu § 1º do artigo 4º da Lei 1.060/1950), que só poderá ser rompida quando o juiz verificar que a situação fática do requerente é contrária às finalidades do instituto da gratuidade de justiça.
5. O indeferimento da gratuidade de justiça deve – assim como todas as decisões judiciais – ser devidamente fundamentado (inciso IX do artigo 93 da Constituição da República de 1988), pena da violação de direito constitucional reconhecido ao cidadão hipossuficiente.
6. O instituto da gratuidade de justiça não pode ser indeferido sob o falso argumento de que o requerente é proprietário de bem imóvel, haja vista que a hipossuficiência se mede no âmbito financeiro, isto é, do numerário existente para o enfrentamentos das custas e demais emolumentos judicias ou extrajudiciais, sem o comprometimento, é claro, do sustento do requerente e de sua família, e não sob o ângulo tão-somente patrimonial.
7- A limitação prévia, mediante patamar financeiro, pela jurisprudência ou por lei é inconstitucional e ilegal para a concessão da gratuidade de justiça, dado que apenas o juiz no caso concreto poderá avaliar se o requerente tem direito subjetivo à gratuidade de justiça.


Referências:
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 17ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 121.
[2]Apud MORAES, Sílvio Roberto Mello. Princípios Institucionais da Defensoria Pública: Lei Complementar de 12.1.1994 Anotada. 1 edição, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1995, p. 61.
[3] OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 153-156.
[4]Idem. p. 153-156.
[5] MORAES, Guilherme Peña de. Instituições da Defensoria Pública. Malheiros: São Paulo, 1999, p. 61.
[6] DIDIER JR., Fredie. e OLIVEIRA, Rafael. Benefício da Justiça Gratuita. Editora Podivm: Salvador, 2008, p. 39-40.
[7] SOUZA, Silvana Cristina Bonifácio. Assistência Jurídica Integral e Gratuita. 1ª Edição, Editora Método, São Paulo, 2003, p. 66-67.


Cunha e Silva Neto