terça-feira, 23 de novembro de 2010

Breves considerações ao artigo 85, caput, e do seu parágrafo primeiro, do Projeto (PLS 166/2010) do Novo Código de Processo Civil brasileiro

Uma das mais tormentosas questões que assolam diariamente os pedidos de gratuidade de justiça, no judiciário brasileiro, gira em torno de tal requerimento ser veiculado por simples afirmação ou se junto desta há necessidade de “prova” da condição de hipossuficiente. A partir deste momento, o jurisdicionado hipossuficiente começa a passar por uma série de “sofrimentos processuais”, pois há juízes que exigem prova esgotativa do estado de precariedade financeira, embora outros, felizmente, se contentem (em harmonia com a Constituição de 1988) com a mera afirmação. Todavia, ao se ler a redação do artigo 85 (caput) e seu parágrafo primeiro do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, a impressão que se tem é que os membros da Comissão ou não tinham conhecimento dessa séria questão ou preferiram optar pela preservação dos interesses patrimoniais do Estado, haja vista que resolveram, por intermédio do parágrafo primeiro daquele artigo, regular expressamente e tão-somente a averiguação da insuficiência de recursos do requerente, esquecendo da regra da mera afirmação de hipossuficiência. Reproduzo a seguir o artigo 85 do Projeto (PLS 166/2010) do Novo Código de Processo Civil:

“Art. 85. A parte com insuficiência de recursos para pagar as custas e as despesas processuais e os honorários de advogado gozará dos benefícios da gratuidade, na forma da lei.
§1º O juiz poderá determinar de ofício a comprovação da insuficiência de recursos de que trata o caput, se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos requisitos legais da gratuidade de justiça.
§2º Das decisões que apreciarem o requerimento de gratuidade de justiça, caberá agravo de instrumento, salvo quando a decisão se der na sentença.”


Na verdade, o mencionado parágrafo primeiro passará a ser – se aprovado pelo Poder Legislativo naqueles termos originais -, o sustentáculo para aqueles magistrados que entendem equivocadamente (inconstitucionalmente) que o requerimento de gratuidade precisa ser exaustivamente provado. Ou seja, o mencionado parágrafo primeiro será a base dos indeferimentos dos pedidos de gratuidade de justiça ao sabor da discricionariedade (quiçá arbitrária) judicial, associada ao conceito jurídico indeterminado, representado pela expressão “insuficiência de recursos”.
Ora, num país de excluídos, como o nosso, no qual pagar custas processuais e honorários de advogado é ainda um luxo de uma minoria, causa espécie que uma Comissão de notáveis processualistas deixe de levar em consideração as dificuldades enfrentadas pelos jurisdicionados hipossuficientes na busca de tutela dos seus direitos, máxime do seu direito fundamental de acesso à justiça.
Lembro aos membros da Comissão do Senado Federal, que ora se debruçam sobre o conteúdo do Projeto do Código de Processo Civil - mais parecido com um Reformão do que propriamente com um novo código, máxime porque, pelo que noto, se me afigura mais uma reprodução de quase 80% (oitenta por cento) do paradigmático Código Buzaid – que a construção de um Código de Ritos, a qual deve se pautar obrigatoriamente pelo seu compromisso com a realização dos direitos fundamentais da cidadania, dentre eles o acesso à justiça e ao direito é imperativo indispensável sem o qual de nada vale um novo Código ou mesmo de um Reformão que lhe faça as vezes.
É claro que a fim de se efetivar o acesso à justiça e ao direito há que se procurar canais hábeis que facilitem seu exercício, como, por exemplo, a técnica da mera afirmação de hipossuficiência financeira. Recordo-me de que, numa das cinematográficas audiências públicas da Comissão do Anteprojeto, ocorrida na cidade de Curitiba, no ano corrente, um dos seus membros não se cansou de falar do princípio da isonomia, segundo o qual o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil tencionava que os jurisdicionados fossem tratados de forma igualitária.
Mas dessa afirmação me vem a indagação: será que se um magistrado, por exemplo, do Nordeste brasileiro se contentar com a mera afirmação de hipossuficiência e o outro da Região Sul brasileira, compreender que não basta a mera afirmação, mas associada a esta deve haver a juntada de vários documentos acerca da condição financeira do requerente, estará existindo aí tratamento igualitário pelo judiciário no que tange às cidadãos de regiões diversas do território brasileiro? Penso que não, daí a existência das regras facilitadoras ao deferimento da gratuidade de justiça constantes do artigo 4º da Lei nº 1.060/1950.
É por demais sabido, especialmente pelos mais velhos, que décadas atrás houve toda sorte de percalços do cidadão hipossuficiente brasileiro, chegando mesmo às raias do constrangimento à sua pessoa com a malfadada e autoritária exigência de um “atestado de pobreza”, obtido junto à autoridade policial. A pobreza era naqueles tempos – se é que não continua a sê-lo – um caso de polícia.
Com promulgação da Lei 1.060/1950, e das suas posteriores modificações infraconstitucionais, houve um tratamento mais humanitário aos cidadãos desprovidos de recursos financeiros, que poderiam, a partir daquele instante, requerer a concessão (efetivação) da gratuidade mediante mera afirmação de dita condição. Através da Constituição da República de 05 de outubro de 1988 vem o coroamento da gratuidade de justiça com a sua constitucionalização.
No entanto, ainda, são encontráveis todos os dias na labuta forense nacional decisões judiciais que visualizam a gratuidade de justiça com os olhos do passado, teimando em requerer exaustivamente uma prova de índole negativa.
Existirão aqueles que irão afirmar que não haveria necessidade do Anteprojeto do Código Processo Civil detalhar o que já está previsto no artigo 4º da Lei nº 1.060/1050, o que seria uma desnecessária obviedade. Sim, seria até pertinente aludida assertiva se não fosse o referido Anteprojeto, agora projeto, recheado de obviedades do início ao fim de sua redação. Sem dúvida afirmar que “a parte com insuficiência de recursos para pagar as custas e as despesas processuais e os honorários de advogado gozará dos benefícios da gratuidade de justiça, na forma da lei” é uma exemplar obviedade, mormente em face das conquistas históricas produzidas pela Lei 1.060/1050 e das suas posteriores modificações. Mas o problema não é a obviedade em si. Muitas das vezes ser óbvio é um ótimo artifício linguístico a bem de incutir uma ideia fundamental.
Ou seja, se era para reproduzir o texto e o conteúdo da Lei nº 1.060/1950, que se repetisse uma das suas partes fundamentais, quais sejam, as normas facilitadoras do reconhecimento da gratuidade de justiça, via mera afirmação de hipossuficiência, especialmente porque mencionada regra se insere como uma forma de efetivação do direito ao acesso à ordem jurídica justa. Pouco importa afirmar o direito à gratuidade de justiça se no mundo vivido sua concessão padece de toda sorte de obstáculos à sua efetivação. Ao invés da Comissão do Anteprojeto ter se preocupado com a regra de facilitação do reconhecimento da gratuidade de justiça, reproduzindo-a, ainda que, de forma repetitiva e cansativa - nunca é cansativo afirmar e reconhecer um direito fundamental expressamente contemplado por nossa Lei Fundamental de 1988 – preferiu se esmerar num parágrafo que tem por preocupação principal indeferir (ainda de forma virtual) o requerimento de gratuidade de justiça.
Lembro, também, que, de uma maneira geral os Códigos de Ritos determinam uma grande influência no imaginário dos juízes – se está na código há de ser obedecido – o que favorece e estimula mudanças nos comportamentos jurisprudenciais, especialmente no tange ao desenvolvimento do direitos humanos no âmbito do direito processual civil.
Tivesse a Comissão de juristas de escol do Anteprojeto do intitulado Novo Código de Processo Civil reproduzido a regra constante do artigo 4º da Lei nº 1.060/1950 sobre a mera afirmação de hipossuficiência, ainda que na esteira da obviedade, teríamos dentro de um Código de Processo Civil, a definição da regra indispensável de facilitação do reconhecimento da gratuidade de justiça, o que, sem dúvida, afastaria o tratamento desigual entre os jurisdicionados hipossuficiente de todo os país, visto que alguns magistrados se contentam com a simples afirmação e outros, em sentido oposto, investem na exigência, o mais das vezes desumana, da prova exaustiva da condição de hipossuficiente, olvidando que a regra é o deferimento da gratuidade de justiça frente a simples afirmação e a exceção é o seu indeferimento nesse país de excluídos.
Quanto ao parágrafo segundo do artigo 85 do Projeto (Anteprojeto), deixo de analisá-lo, tendo em conta que sua redação parece pacificar, pelo menos numa primeira análise, o debate sobre a natureza da decisão concessiva da gratuidade de justiça e do seu adequado recurso.
A título de contribuição ao debate do Anteprojeto, do Código de Processo Civil, agora projeto, em trâmite, no Congresso Nacional, creio que uma redação que melhor se coadunaria com a acesso à ordem jurídica justa e aos direitos humanos em sede processual, especialmente no que pertine ao direito fundamental à gratuidade de justiça em um novo CPC, louvando-se nas conquistas históricas da redação da Lei nº 1.060/1950 e de suas posteriores modificações, seria a seguinte:

“Seção IV
Gratuidade de Justiça
Art. 85. A parte gozará do direito à gratuidade de justiça mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.
§1º O juiz poderá determinar de ofício a comprovação da insuficiência de que trata o o caput, se houver nos autos elementos que demonstrem a ausência dos requisitos legais da gratuidade de justiça.
§2º Das decisões que apreciem o requerimento de gratuidade de justiça, caberá agravo de instrumento, salvo quando a decisão se ser na sentença.”

Quanto ao parágrafo segundo do artigo 85 do Projeto (Anteprojeto), deixo de analisá-lo, tendo em conta que sua redação parece pacificar, pelo menos numa primeira análise, o debate sobre a natureza da decisão concessiva da gratuidade de justiça e do seu adequado recurso.
Foi meu objetivo apenas contribuir, a título de uma crítica construtiva, com a indicação de alguns subsídios opinativos - verdadeira sugestão - para o afeiçoamento do instituto da gratuidade de justiça, a ser implementado num Novo Código de Processo Civil, máxime porque se trata de um direito fundamental do cidadão brasileiro e não uma benesse concedida segundo o humor e a ideologia dos nossos órgãos jurisdicionais.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A afirmação de hipossuficiência no pedido de gratuidade como requisito para a sua concessão e a caracterização da hipossuficiência do requerente

Resumo: O presente artigo versa sobre o direito fundamental à gratuidade de justiça no ordenamento jurídico-brasileiro, especificadamente, no que tange à afirmação de hipossuficiência, constante do artigo 4º da Lei nº 1060/1950, bem como da caracterização da hipossuficiência do ponto de vista financeiro.

Palavras-chave: direito fundamental, gratuidade de justiça, afirmação de hipossuficiência, caracterização da hipossuficiência financeira do cidadão

Abstract: The present article deals with the fundamental right to gratuitous justice in the Brazilian-judicial regulation, especially concerning lack of citizen’s financial means as expressed in the article 4th of Law no. 1060/1950, as well as the characterization of its state of financial necessity.

Keywords: fundamental right, gratuitous justice, affirmation of hyposufficiency, characterization of citizen’s financial hyposuffciency.




“Não bastaria à Constituição instituir o Judiciário e disponibilizar medidas ao cidadão para defender seus interesses se não levasse em consideração a real situação social, onde o nível de pobreza é altíssimo e as despesas com o processo podem inviabilizar o acesso à jurisdição. Num país em que milhões de pessoas vivem em estado de extrema miséria é preciso assegurar aos necessitados o direito de demandar perante o Poder Público, sob pena de, assim não o fazendo, excluí-los do processo democrático e do direito de participação – mais do que isso, do direito instrumental (garantias) de defender seus interesses em juízo; seria, enfim, negar aos pobres a eficácia dos direitos conferidos pela Constituição.” (Francisco Gérson Marques de Lima. Fundamentos Constitucionais do Processo (sob a perspectiva da eficácia dos direitos e garantias fundamentais). 1ª edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2002, p. 208-209).

Volta e meia nos deparamos, para não dizermos frequentemente, com indeferimentos de pedidos de gratuidade de justiça totalmente alheios à vontade da Constituição de 1988 e do próprio ordenamento infraconstitucional, efetivador desse direito fundamental. Não é incomum constatarmos, no dia-a-dia forense, decisões judiciais que criam uma série de dificuldades – diga-se de passagem, inconstitucionais e ilegais – à concessão desse direito constitucional aos cidadãos brasileiros. Muitos desses indeferimentos de gratuidade de justiça primam por uma visão anacrônica da interpretação constitucional, bem como atentam contra a dignidade da pessoa humana, máxime diante de uma realidade brasileira marcada pela exclusão social e econômica de grande parte de nossa população. Frente a esse quadro de injustiça social, muitos magistrados teimam em ver o instituto da gratuidade de justiça como uma medida excepcional, que deve necessariamente ser “provada”, quando não mesmo exaustivamente “provada”, desconsiderando a presunção legal decorrente da mera afirmação de hipossuficiência positivada pelo consumidor-jurisdicionado (artigo 4º da Lei 1.060/1950). Há mesmo magistrados que (in)compreendem o instituto da gratuidade como um mero benefício governamental, uma dádiva do Leviatã, restringindo sua concessão apenas àqueles que, aos seus olhos, lhes parecem miseráveis. Nada mais anacrônico e desumano do que considerar o direito constitucional à gratuidade de justiça do ponto de vista de um favor estatal e pressupor (erroneamente) que a sua concessão esteja atrelada tão-somente à indigência de seu requerente.
Visto este panorama e a bem de melhor nos situarmos no instituto da gratuidade de justiça, é preciso que nunca olvidemos que o fundamento maior para o seu deferimento está na Constituição da República de 1988, precisamente no seu inciso LXXIV do artigo 5 º, a dizer:
“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”
É a partir do inciso constitucional acima que deverá o julgador se debruçar inicialmente para o enfrentamento do pedido de gratuidade de justiça. Mas, para isso, um alerta faz-se indispensável, qual seja, que a apreensão do sentido normativo-constitucional do inciso LXXIV do artigo 5º da CRFB/88 não pode nortear-se tão-só pela exegese literal do seu dispositivo e por uma suposta clareza de seu texto. Alerta esse dirigido nomeadamente aos desavisados que entendem necessária a comprovação da insuficiência de recursos pelo requerente, tendo em conta tão-somente a literalidade do texto constitucional. Já na primeira metade do século passado, Carlos Maximiliano, ministro do Supremo Tribunal Federal, na sua clássica obra Hermenêutica e Aplicação do Direito – de leitura obrigatória a todos os operadores jurídicos, em que pese alguns vergonhosamente nem conheçam o seu título ou mesmo seu autor– já punha sob reservas o apego apenas pela exegese verbal do texto legal. Nesse sentido, o mestre gaúcho já dissertava na primeira metade do século XX, in verbis:

“O processo gramatical, sobre ser o menos compatível com o processo, é o mais antigo (único outrora). “O apego às palavras é um desses fenômenos que, no Direito como tudo o mais, caracterizam a falta de maturidade do desenvolvimento intelectual. No começo da história do Direito poder-se-ia gravar esta epígrafe – In principio erat verbum. A palavra, quer escrita, quer solenemente expressa (a fórmula), aparece aos povos crianças como alguma coisa de misterioso, e a fé ingênua atribui-lhe força sobrenatural” (1). Em Roma empregavam-na para deslocar, por uma espécie de sortilégio, as messes de uma seara para a outra, e também para fazer os deuses abandonarem uma cidade sitiada. Precisamente os povos mais atrasados, de linguagem menos culta, apegam-se aos vocábulos; o emprego obrigatório das fórmulas consagradas corresponde a um grau primitivo de civilização. Prevalece a crença no fenômeno exterior; ora a palavra é aquilo que aparece como suscetível de apreensão, imediato; o pensamento é indivisível, mediato. Preferem-se espíritos cultos, emancipados”[1]

Todavia, mesmo com o alerta doutrinal de Carlos Maximiliano, feito nas primeiras décadas de nossa república, muitos juízes brasileiros, já agora no século XXI, sob a égide da Constituição cidadã de 1988, permanecem atrelados a uma leitura meramente literal do texto constitucional, singularmente em se tratando do direito fundamental à gratuidade de justiça. Ao realizarem a leitura do LXXIV do artigo 5 º do Texto Fundamental de 1988 impressionam-se com a sua proposição final “aos que comprovarem insuficiência de recursos” e passam a exigir indevidamente que os requerentes desse direito façam prova, diga-se de passagem, de índole negativa, de uma situação jurídica de hipossuficiência, indo com tal proceder na contramão do desenvolvimento dos direitos fundamentais. Analisando o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, no início da década de 90, o jurista e o maior processualista vivo no Brasil, José Carlos Barbosa Moreira, já dava mostras da incompatibilidade de uma interpretação literal daquele dispositivo constitucional em face da promoção dos direitos fundamentais do cidadão hipossuficiente financeiramente. Reproduzimos as palavras do insuperável mestre fluminense e que sirvam de exemplo aos desavisados e adeptos da exegese literal, ao modo da superada Escola da Exegese, em matéria de pedido de gratuidade de justiça, nessa primeira década do século XXI, in verbis:

“Sucede que alguns estão pretendendo vislumbrar no texto constitucional um sinal de retrocesso, na medida em que interpretam literalmente a cláusula da Constituição de 1988, segundo o qual o Estado prestará assistência aos que comprovarem insuficiência de recursos. Dá-se ao texto uma interpretação literal, para concluir-se que a Constituição de 1988 teria revogado aquela disposição introduzida pela Lei n. 7.510, que dispensava a comprovação. A mim não parece razoável. Ela peca por ser estreitamente literalista. É óbvio que a Constituição de 1988 jamais pretendeu restringir a concessão do benefício; ao contrário, ela quis ampliá-lo. Com todos os seus defeitos, é uma Constituição marcada pela preocupação social. É possível que em alguns pontos, tenha ficado aquém do que devia, e é até possível também que, noutros momentos, ela tenha tido o seu quê de utópica, mas importa: o fato central, a verdade inquestionável, é que ela procurou assegurar o avanço da comunidade brasileira no sentido de uma organização social mais equânime, menos marcada por desníveis intoleráveis; e não iria, certamente, dar marcha-à-ré nesse processo evolutivo. Temos de interpretar o texto com o espírito aberto ao sentido geral da Constituição. A meu ver, continua sendo perfeitamente possível, e até diria obrigatório, ao juiz aplicar a disciplina dada pela Lei n. 7.510. A Lei 7.510 pura e simplesmente considerou – digamos assim, atecnicamente, não importa – bastante como prova a declaração do interessado, prova essa sujeita eventualmente à prova do contrário.” [2]

Através das palavras sempre conscientes do Professor Barbosa Moreira, fica claríssimo que a proposição final do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988 não poder ser interpretada de forma literal, a exigir que o requerente do direito à gratuidade de justiça faça prova da insuficiência de recursos, sob pena da produção de retrocesso social em matéria de âmbito de acesso à ordem jurídica justa. Ou seja, o magistrado deparando-se com pedido de gratuidade de justiça, deverá contentar-se, inicialmente, com a mera afirmação de hipossuficiência, porquanto milita em favor do requerente uma presunção legal de legitimidade na sua afirmação. É claro que quando afirmamos ser uma presunção legal (de natureza relativa, juris tantum) não estamos negando o exercício da fiscalização do julgador sobre a veracidade do conteúdo da mera afirmação de hipossuficiência do requente. Muitas das vezes o pedido de gratuidade de justiça emanado de certa pessoa, por exemplo, um empresário, colocará sob forte dúvida a veracidade da afirmação de hipossuficiência. Mas, numa situação como essa, ainda assim, não deverá o magistrado negar de plano o pedido de gratuidade, sendo um direito subjetivo do requerente justificar aquela afirmação de hipossuficiência, não obstante sua condição aparentemente inviabilizadora daquele direito. É claro que num exemplo como esse, o juiz, visualizando que a situação financeira do requerente inviabiliza o pedido à gratuidade de justiça, deverá indeferi-lo, mas ainda assim de forma fundamentada. Contudo, tal exemplo é uma exceção à regra, pois dentro da normalidade econômica do cidadão médio, quem requer o pedido de gratuidade de justiça, presume-se carente de recursos até prova em contrário(§ 1º do artigo 4º da Lei 1.060/1950). Lembremos que o Brasil é um país de excluídos, onde o acesso à justiça ainda é dificultado à grande parte de sua população. O que não é dado ao poder judiciário e aos seus órgãos auxiliares é investigar certos detalhes irrelevantes ao deferimento da concessão desse direito fundamental, como, por exemplo, se o cidadão requerente é possuidor de bem de raiz, especialmente quando esse bem imóvel não apresenta nenhum indicativo de suntuosidade e trata-se do único bem daquele requerente. Aliás, não existe na legislação brasileira reguladora da gratuidade de justiça, tanto em nível judicial ou extrajudicial, nenhum requisito legal que impeça o deferimento de gratuidade de justiça aos que forem possuidores de bem imóvel. Sobre o suposto obstáculo ao deferimento da gratuidade de justiça às pessoas proprietárias de bens imóveis, o ilustre defensor público fluminense Rogério Nunes de Oliveira já se manifestou no seguinte sentido, in verbis:
“Através da deflagração do procedimento de dúvida, certos delegatários se valem de um expediente dotado de aparente legalidade para disseminar a exclusão dos desvalidos, achando fundamentos em subjetivismos e acasos, como o valor do imóvel, que será objeto de escrituração ou até mesmo o aspecto físico e o nível de instrução das pessoas que titulam o direito à justiça gratuita; pasmem, chegam ao extremo de orientar seus empregados a consolidar uma investigação minuciosa nas condições de moradia, nos afazeres e atividades cotidianas e em outras circunstâncias que gravitam em todo do dia-a-dia do cidadão que faz jus à realização gratuita do ato extrajudicial, no afã de retirar de alguma particularidade ou detalhe pessoal do sujeito algum pretenso indício que sirva de lastro para a recusa na efetivação do serviço.”[3]
E arremata Nunes de Oliveira:
“É bom que fique claro que a dúvida só se legitimará nos casos em que a gratuidade do ato ou do serviço postulado se revelar manifestamente descabida, não se prestando, por conseqüência, como instrumento de consulta ou de excitação do espírito de devaneio dos notários e registradores, e muito menos como política de criação de dificuldades para a venda de facilidades. Assim é porque, com grande freqüência, algumas pessoas passam metade de suas vidas juntando seus parcos recursos para a realização do sonho de compra da casa própria, experimentando várias privações pessoais e restrições no orçamento familiar, constituindo, desse modo, gritante injustiça cobrar-se de um cidadão desvalido o preço de uma escritura e de seu registro, além dos emolumentos pertinentes a certidões, reconhecimento de firma, etc. Dizer-se o contrário redundaria na imposição de mais um ônus a quem, sabe-se lá a custa de quais sacrifícios, conseguiu amealhar alguns poucos recursos financeiros para ser dono de um teto para abrigar a si e aos seus.[4] “

As passagens da obra de Nunes de Oliveira põem por terra a pretensão ilegítima daqueles que entendem ser inviável a concessão de gratuidade de justiça aos proprietários de imóveis, sobretudo, como enfatizado pelo ilustre defensor público fluminense, quando “algumas pessoas passam metade de suas vidas juntando seus parcos recursos para a realização do sonho de compra da casa própria, experimentando várias privações pessoais e restrições no orçamento familiar”.
Mas sendo questionada a presunção legal quanto à afirmação de hipossuficiência, qual seria o patamar financeiro a ensejar o deferimento judicial da gratuidade de justiça? Haveria a limitação à sua concessão a um número determinado de salários mínimos? Afinal, a lei reguladora da concessão de gratuidade de justiça limita o seu deferimento a certo valor? O juiz está, então, atrelado a algum valor previamente fixado por lei a fim de deferir a gratuidade de justiça?
Na verdade, a lei da gratuidade de justiça – Lei n. 1.060/50 – em nenhum momento elege qualquer valor ou número de salários mínimos para o deferimento da gratuidade de justiça, pois deixa ao magistrado verificar, no caso concreto, se estão presentes os pressupostos fáticos a bem da concessão da gratuidade de justiça. Entretanto, apesar da inexistência de uma determinação prévia de valores para a concessão de gratuidade, criou-se certo mito em alguns estados da federação brasileira, particularmente no primeiro grau de jurisdição, de que só se concede a gratuidade de justiça aos que não percebam mais de dois salários mínimos mensais. Em alguns estados, ainda exige-se, agregado ao máximo de dois salários mínimos, que o requerente não tenha bem de raiz. Absurdo tanto o suposto raciocínio da concessão da gratuidade de justiça ao valor máximo de dois salários mínimos como a ilegítima condicionante de ausência da qualidade de proprietário de bem de raiz. Acresça-se que nem mesmo a dimensão patrimonial - de índole econômica e não financeira - significativa do requerente pode, em tese, se traduzir em obstáculo ao deferimento da gratuidade de justiça, porquanto, conforme as palavras do ilustre membro do ministério público fluminense Guilherme Peña de Moraes, in verbis:
“(...) o interessado não é vinculado à alienação de bens integrantes de seu acervo patrimonial com vista à realização das custas do processo e dos honorários advocatícios, sendo dados essenciais para a verificação da situação econômica do pretendente os rendimentos e os bens consistentes em pecúnia ou facilmente conversíveis em espécie.”[5]
Dessa forma, não é pressuposto ao deferimento da gratuidade de justiça que o requerente seja indigente, mas que da situação de necessidade decorra a impossibilidade de não poder arcar com as custas do processo sem o sacrifício do sustento próprio e de sua família, o que é um situação completamente diversa da indigência. Não é porque, por exemplo, uma pessoa tenha ganhos de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) ou mais que lhe seja vedada o acesso à gratuidade de justiça. Tudo dependerá do quanto é despendido para sua mantença e de sua família. Enfim, tudo dependerá do caso concreto submetido à cognição do juízo. Na realidade, não há limites para a concessão da gratuidade de justiça. A decisão judicial que se paula por um limite prévio viola o direito fundamental ao acesso à ordem jurídica justa. Reiterando a inviabilidade de um valor máximo, previamente fixado, para a concessão da gratuidade de justiça, os ilustre professores Fredie Didier Jr. E Rafael Oliveira afirmam:
“Não nos parece razoável, contudo, o patamar que vem sendo estabelecido pela jurisprudência para o deferimento do benefício da gratuidade: alguns julgados vêm entendendo que somente será possível a concessão àqueles que perceberem até 5 salários mínimos por mês.
É perfeitamente plausível que alguém que aufira renda mensal superior a este patamar não tenha condições de arcar com o custo de um processo judicial. Basta pensar, por exemplo, no jurisdicionado que possui filhos em idade escolar e que custeia todas as despesas do lar. De outro lado, também é possível que alguém receba até 5 salários mínimos não possua quaisquer despesas processuais e, pois, possa arcar com o custo da demanda. A lei não exige parâmetros. Tudo se resolve, segundo entendemos, casuisticamente, aplicando o princípio da proporcionalidade.”[6]
Assim, o deferimento do pedido de gratuidade de justiça não se pauta por um cálculo matemático prévio,[7] mas antes por uma sensibilidade do juízo em verificar se o requerente é possuidor de numerário (natureza financeira) suficiente para despesas processuais, depois, é claro, de atendidos (descontados) todos os gastos para a mantença de sua família. Mantença da família, frise-se, aí, digna, e não sacrificadora da sua qualidade de vida, a bem de enriquecer ilegitimamente os cofres do Estado.
Assinalamos, ainda, que alguns juízes estaduais, no intuito de limitar ilegitimamente o direito fundamental à gratuidade de justiça, tentam se valer do artigo 789 da CLT e da Lei nº 5.584/1970, se apegando tais magistrados ao limite máximo de 2 salários mínimos legais indicados naquelas normas de índole trabalhista. Ocorre que tal limitação, dentro da melhor hermenêutica jurídica, só se aplica no âmbito do processo trabalhista, sendo inadmissível sua extensão aos processos judiciais da justiça comum (quer estadual, quer federal), onde imperam os princípios e as regras constantes da Lei nº 1.060/1950.

Conclusão:
1. A gratuidade de justiça traduz-se em direito fundamental do cidadão brasileiro hipossuficiente para o devido acesso à ordem jurídica justa, especialmente porque a realidade brasileira é marcada, ainda, por acentuada exclusão social e econômica de grande parte de nossa população, cujo acesso aos tribunais ainda não é adequado.
2. A interpretação do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, materializador da gratuidade de justiça, deve ser realizada em harmonia com todas as conquistas históricas originadas da Lei nº 1.060/1950 e de suas posteriores modificações, sob pena da produção do retrocesso social e jurídico.
3. O requerimento da gratuidade de justiça se embasa tão-somente na simples afirmação de pobreza (artigo 4º da Lei 1.060/1950), constante do corpo da petição inicial (artigo 4º da Lei 1.060/1950), não sendo necessária a prova de tal condição de hipossuficiência mediante documentos ou outras provas anexas à inicial.
4. A afirmação de hipossuficiência parte de uma presunção (relativa) reconhecida pela Lei nº 1.060/1950 (especificadamente do seu § 1º do artigo 4º da Lei 1.060/1950), que só poderá ser rompida quando o juiz verificar que a situação fática do requerente é contrária às finalidades do instituto da gratuidade de justiça.
5. O indeferimento da gratuidade de justiça deve – assim como todas as decisões judiciais – ser devidamente fundamentado (inciso IX do artigo 93 da Constituição da República de 1988), pena da violação de direito constitucional reconhecido ao cidadão hipossuficiente.
6. O instituto da gratuidade de justiça não pode ser indeferido sob o falso argumento de que o requerente é proprietário de bem imóvel, haja vista que a hipossuficiência se mede no âmbito financeiro, isto é, do numerário existente para o enfrentamentos das custas e demais emolumentos judicias ou extrajudiciais, sem o comprometimento, é claro, do sustento do requerente e de sua família, e não sob o ângulo tão-somente patrimonial.
7- A limitação prévia, mediante patamar financeiro, pela jurisprudência ou por lei é inconstitucional e ilegal para a concessão da gratuidade de justiça, dado que apenas o juiz no caso concreto poderá avaliar se o requerente tem direito subjetivo à gratuidade de justiça.


Referências:
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 17ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 121.
[2]Apud MORAES, Sílvio Roberto Mello. Princípios Institucionais da Defensoria Pública: Lei Complementar de 12.1.1994 Anotada. 1 edição, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1995, p. 61.
[3] OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 153-156.
[4]Idem. p. 153-156.
[5] MORAES, Guilherme Peña de. Instituições da Defensoria Pública. Malheiros: São Paulo, 1999, p. 61.
[6] DIDIER JR., Fredie. e OLIVEIRA, Rafael. Benefício da Justiça Gratuita. Editora Podivm: Salvador, 2008, p. 39-40.
[7] SOUZA, Silvana Cristina Bonifácio. Assistência Jurídica Integral e Gratuita. 1ª Edição, Editora Método, São Paulo, 2003, p. 66-67.


Cunha e Silva Neto

sábado, 17 de outubro de 2009

Breves considerações acerca da adoção do princípio da verossimilhança no Código de Processo Civil Brasileiro na Década de 90 do Século XX


A Reforma do Código de Processo Civil na Década de 90 do Século XX representa um momento de especial relevo para a história do direito processual civil brasileiro, não só em razão do seu compromisso em remover os chamados obstáculos ao pleno acesso à justiça e que, segundo o professor Dinamarco, estariam localizados em quatro fundamentais pontos sensíveis do sistema: pela admissão em juízo, pelo modo-de-ser do processo, pela justiça das decisões e pela sua efetividade, ou utilidade,[i] como também porque com a inclusão da tutela antecipada no seu bojo deveremos, a partir de agora, trabalhar com o princípio da verossimilhança.

É precisamente na adoção do princípio da verossimilhança pelo legislador processual de 1994 que encontraremos talvez o ponto nerval de toda reforma do Código de Processo Civil. Ao inserir o princípio da verossimilhança na Reforma do Código de Processo Civil, o legislador processual de 1994 criou uma ruptura com o conceito de real operado até então pelos operadores jurídicos. Sabe-se que o modelo de verdade adotado pelo direito processual brasileiro – conforme a matriz européia – é avesso aos julgamentos firmados na verossimilhança alegada pelas partes litigantes. E trazer o princípio da verossimilhança ao status de conteúdo da reforma processual de 1994 é admitir que o modelo tradicional de verdade adotado pelo direito processual brasileiro não satisfaz aos anseios dos consumidores dos serviços judiciários. Daí o aparecimento da tutela antecipada do artigo 273 e da ação monitória no direito processual brasileiro como forma de responder à crise da verdade produzida pelo modelo processual-tradicional. Uma – a tutela antecipada do artigo 273 – verificável na afirmação constituída de carga verossímil, não necessariamente embasada num documento palpável. E a outra com fundamento na probabilidade da verdade afirmada em certo documento ou por certas testemunhas. Aliás, no procedimento monitório temos também a aceitação da carga altamente verossímil da alegação apresentada em juízo, com apoio em documento ou prova testemunhal, onde o grau de verossimilhança aumentará conforme se der a apresentação de embargos ou não pelo réu.

Dessa forma, não haverá como operacionalizar o princípio da verossimilhança na tutela antecipada do artigo 273 do Código de Processo Civil, - pelo menos de acordo com este novo critério de realidade indicado pelo legislador processual de 1994 – senão através da tomada de consciência pelos operadores jurídicos de que a verdade produzida pela instrução processual sempre estará sujeita à precariedade dos sentidos humanos e das deficiências da própria técnica processual.

É claro que o modelo tradicional de verdade apresentado pelo direito processual civil como uma “verdade” destituída de dúvidas e verificável “logicamente”,[ii] ainda faz parte do imaginário dos operadores jurídicos, com especial caracterização na figura dos magistrados. A própria feitura do processo de conhecimento ( ordinário ) traz consigo a idéia de manifestação de verdade, onde haveria um suposta neutralidade do magistrado como também um suposto tratamento igualitário das partes. A adoção do princípio da verossimilhança no direito processual civil brasileiro indica a necessidade de o operador jurídico raciocinar de uma forma diversa daqueles tempos de negação dos juízos de verossimilhança, i.e., deverá estar consciente de que a verdade alcançada no processo tem uma natureza relativa e que, também, o processo de conhecimento ( ordinário ) não é o único capaz de descobri-la.

Assim, cremos que a inserção do princípio da verossimilhança no sistema processual – expressamente admitido pelo artigo 273 do Código de Processo Civil – revela um novo atuar do operador jurídico frente à envergadura daquele princípio modificador do critério de apreensão do real. Daqui em diante, os operadores jurídicos terão oportunidade de conceder tutela antecipada conforme a verossimilhança alegada pelas partes, no entanto, dita oportunidade só restará efetivamente exercida caso haja a suficiente coragem daqueles que irão praticá-la. É mister que se diga que o exercício da tutela antecipada mediante juízo de verossimilhança traz algum risco às convicções psicológicas dos operadores jurídicos, mormente no caso dos magistrados. O exercício do poder jurisdicional não se faz sem os riscos inerentes a tal condição, mesmo porque julgar é escolher um certo caminho de justiça, ainda que possa representar um erro aos olhos dos demais julgadores. Como bem disse o professor Dinamarco: “Nesse quadro em que a convicção não pode corresponder à certeza, é inevitável correr riscos, sob pena de inviabilizar os juízos.”[iii]

Cunha e Silva Neto.



[i] DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do código de processo civil. 2ªed., São Paulo, Ed. Malheiros, p. 30.

[ii] A expressão “logicamente” há de ser encarada de duas formas: como reflexo de um pensamento matematicamente aferível e que, dessa forma, não se explica no direito ou como fazendo parte de uma dimensão argumentativa e que se mostra mais acessível ao cenário jurídico.

[iii] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3ªed., São Paulo, 1994, p. 239.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO EM MIGUEL REALE

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O momento anterior à “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale – 3. A experiência jurídica como estrutura tridimensional – 4. Dialética da complementaridade – 5. O Direito como experiência histórico-cultural – 6. Modelos do Direito – 7. Conclusões – 8. Bibliografia Geral.

RESUMO: O nosso trabalho tem como objeto a análise da “Teoria Tridimensional do Direito” do jus-filósofo brasileiro Miguel Reale, com ênfase nos seguintes aspectos: a experiência jurídica como estrutura tridimensional, a dialética da complementaridade, o Direito como experiência histórico-cultural e os modelos do Direito.

PALAVRAS-CHAVE: tridimensionalidade, experiência-jurídica, experiência histórico-cultural e modelos do Direito.

ABSTRACT: This work purpots to analyse the Brazilian jurist-philosopher Miguel Reale’s “Tridimensional Law Theory”, by highlighting the following angles: as a tridimensional structure, the dialectics of complementarity, Law as a historical-cultural experience and Law patterns.

KEY WORDS: tridimensional Law Theory, dialectics of experience, historical-cultural experience, Law patterns.

1 – Introdução

O presente trabalho tem por escopo analisar “A Teoria Tridimensional do Direito” do jus-filósofo Miguel Reale, especialmente porque o lente da Universidade de São Paulo, ao sistematizar sua teoria, contempla o Direito não como um esquema puramente lógico, uma vez que a Ciência Jurídica deve ser considerada em termos de uma realidade cultural, onde a norma é tomada como resultado da tensão entre fato e valor. Ou seja, para o devido entendimento da norma jurídica mister se faz estudá-la numa relação de unidade e de integração entre fatos e valores.[1] Aliás, a tomada de posição de Miguel Reale exige do jurista que, ao se deparar com a norma jurídica, saiba que não há como abstrair do seu estudo aqueles fatos e valores, que determinaram a sua própria gênese, sob pena de uma visão reducionista do Direito, o que o descaracterizaria enquanto verdadeira ciência normativa. Disso resulta que toda norma jurídica é uma integração entre fato e valor. Tal posição de Miguel Reale faz com que qualquer teoria que admita um estudo separado daqueles três elementos ( fato, valor e norma ) logre infrutífera e improdutiva para a explicação do fenômeno jurídico.

Importante notar que “A Teoria Tridimensional do Direito”, ao considerar a importância da implicação-polaridade dos elementos fato e valor, produzida no momento normativo, passa a ser uma das teorias antecipadoras dos novos estudos da hermenêutica jurídica forjadas nas diversas universidades brasileiras e do mundo, uma vez que encara o Direito não mais como uma proposição nos moldes de uma lógica formal. Pelo contrário, a Ciência do Direito para Miguel Reale não é uma série de fatos que ocorrem no plano da abstração, mas, sim, fatos que estão inseridos no processo histórico da vida humana.[2]

Acentue-se que a obra de Miguel Reale é uma daquelas obras[3] que se renovam no tempo e no espaço, a dizer, é uma obra que se atualiza pela própria lógica de sua tese, mormente porque o jus-filósofo não vê o homem tão-somente no processo histórico-cultural, tendo em vista que “o homem é, também, a história por fazer-se”.[4]

Esclareça-se que para o implemento da análise da “Teoria da Tridimensionalidade do Direito” de Miguel Reale nos utilizaremos de cinco vieses da sua obra, quais sejam: a experiência jurídica como estrutura tridimensional, a dialética da complementaridade, o Direito como experiência histórico-cultural e modelos do direito.

2 – O momento anterior à “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale

O panorama do Direito anterior às formulações tridimensionais se caracterizava por ser reducionista ou unilinear, especialmente a mentalidade do século XIX. Discorrendo sobre essa situação, Miguel Reale constata:

Já foi dito – e a afirmação é válida em suas gerais dominantes – que a mentalidade do século XIX foi fundamentalmente analítica ou reducionista, sempre tentada a encontrar uma solução unilinear ou monocórdica para os problemas sociais e históricos, ao passo que em nossa época prevalece um sentido concreto de totalidade ou de integração na acepção plena destas palavras, superadas as pseudototalização realizadas em função de um elemento ou fator destacado do contexto da realidade.[5]

Ainda dentro das idéias anteriores à formulação da tridimensionalidade, havia duas tendências que competiam em relação ao fundamento do Direito, sendo que nelas a realidade jurídica não correspondia mais aos padrões do jusnaturalista clássico. Uma dessas tendências tomava os fatos jurídicos estabelecendo uma mera descrição de uma realidade que desenvolveu sob a influência do positivismo e da sociologia “empírico-naturalista”[6]. É o nominado sociologismo jurídico.[7]

De outro lado, com ênfase no criticismo formal do neokantismo de Marburgo, a realidade é apreendida a partir de certos princípios a priori, onde a forma determina o que é jurídico.[8]

Cirell Czerna chama a atenção para esse confronto entre o formalismo lógico e um sociologismo de cunho naturalista, intitulando aludido confronto de “unidimensionalidade”.

Diante desse quadro teórico, havia a necessidade de uma integração dos elementos contrapostos, o que resultaria numa “bidimensionalidade”[9]. No entanto, tal não era, ainda, possível, vez que nenhumas das “duas dimensões poderia oferecer o elemento integralizante”. Vale reproduzir o raciocínio de Cirell Czerna sobre a insuficiência daquelas posições para a produção do elemento integrador:

Se o formalismo lógico acusava o sociologismo de esquecer o critério segundo o qual realidade deve ser ordenada, o sociologismo naturalístico acusava o formalismo de esquecer a realidade viva, encerrando-se na universalidade lógica puramente abstrata. Perante essa “unidimensionalidade”, representada por cada uma das tendências opostas, surge a exigência de compreender a totalidade como uma integração dos elementos contrapostos; mas esta não poderia ser o resultado de uma “bidimensionalidade”, porque para tal integração se desse, nenhuma das duas dimensões poderia oferecer o elemento integralizante: era necessário, pois, que surgisse um terceiro elemento, e que a totalidade adquirisse, por isso mesmo, um aspecto tridimensional.[10]

Ora, é a partir do valor que temos o elemento mediador entre a norma e o fato. Entretanto, é preciso visualizar a “exigência de entender a realidade como unidade”, pena de não haver a integração. Com tal entendimento, anota Cirell Czerna:

Entre a norma e o fato surge assim o valor, como intermediário, como mediador do conflito, elemento de composição da realidade em suas dimensões fundamentais. Interessa ressaltar a exigência de entender a realidade como unidade, sem a qual não se explicaria a tendência a integrar os dois elementos contrapostos, que se deixariam separados num dualismo irredutível, exigência que unicamente pode explicar, na verdade, o surgir da “tridimensionalidade”.[11]

Destaque-se que neste momento anterior à construção de uma teoria da tridimensionalidade dinâmica – pertencente a Miguel Reale – a correlação existente entre os planos fático, axiológico e prescritivo do Direito não foi de logo notada pelos juristas e filósofos. Tal realidade é bem delineada por Reale:

É preciso observar que a unidade ou correlação essencial existente entre os aspectos fático, axiológico e prescritivo do Direito não foi logo claramente percebida pelos juristas e jusfilósofos, os quais, como vimos, foram antes tentados a compreender o fenômeno jurídico à luz de um ou de dois elementos discriminados, dando, assim, origem às teorias reducionistas (...) [12]

Convém acentuar que no amadurecimento das idéias que levaram à formulação do tridimensionalismo são encontrados momentos diversos da teoria. Isto é, no exato momento que os autores reconheceram a viabilidade da composição fato, valor e norma, aí, sim, passamos a ter um incipiente “tridimensionalismo genérico de tipo enciclopédico”.[13] Urge notar que a teoria tridimensional do Direito não surgiu de repente, isto é, não apareceu de toda construída, mas adveio de longo tempo de maturação e autocrítica.[14]Acrescente-se, ainda, que, de acordo com Miguel de Reale, existiam várias modalidades de tridimensionalismo genérico e também diversas teorias tridimensionais específicas.

Somente após o superamento dos estudos estanques do fato, valor e da norma[15]é que teremos constituído o chamado “tridimensionalismo específico”. Nesta fase, temos as formulações mais qualificadas da teoria do tridimensionalismo. Wilhelm Sauer irá ser um daqueles filósofos que, juntamente com Reale, vai elaborar uma teoria da tridimensionalidade mais complexa na década de 40 do século XX.[16] Insta observar, contudo, que, apesar dos pontos em comum com a concepção de Reale, a teoria tridimensional de Sauer apresentará pressupostos metodológicos diversos.[17] Segundo Reale, na concepção de Sauer a tridimensionalidade resulta em um plano estático, “desligado da experiência jurídica como processo histórico”. Criticando a tridimensionalidade de Sauer, Reale aduz:

Não nos explica, com efeito, como é que os três elementos se integram em unidade, nem qual o sentido de sua interdependência no todo. Falta a seu trialismo, talvez em virtude de uma referibilidade fragmentada ao mundo infinito das “mônadas de valor”, falta-lhe o senso de desenvolvimento integrante que a experiência jurídica reclama.[18]

Convém assinalar que ao tempo do aparecimento da “Teoria Tridimensional do Direito” de Reale em 1940, outro jurista já brilhava há muito no cenário internacional, a saber, Hans Kelsen. O mestre austriáco entendia o Direito como sendo tão-somente a norma, quaisquer outras considerações a respeito dessa não entravam na construção de seu conceito. A divulgação da Teoria Tridimensional do Direito” de Reale vem à tona e contrasta com o normativismo hierárquico de Kelsen, em particular porque nas palavras do jus-filósofo brasileiro:

(...) a norma é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro Fundamentos do Direitoeu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.

Lembre-se, outrossim, que incialmente Miguel Reale se referiu à sua teoria como sendo “bidimensional”, mas, na realidade, segundo o próprio jus-filósofo, em pese a utilização daquela expressão, o tridimensionalismo já existia, “mas sem a plenitude de sua acepção verbal, o que demonstra como, às vezes por força de inércia, o sentido das palavras ou da forma lingüística adequada tarda a revelar-se”.[19]

3 – A experiência jurídica como estrutura tridimensional

Partindo do entendimento de Miguel Reale que “fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica”, o que aponta no sentido de que os filósofos, juristas e sociólogos não devem estudar nem analisar esses elementos de forma isolada, mas, sim, associados ao “mundo da vida”, temos que mencionada posição rejeita o nominado tridimensionalismo genérico ou abstrato. Quer dizer, as investigações do filósofo, do jurista e do sociólogo passam a ter um sentido dialético, v.g., a sentença judicial é apreendida segundo uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico formal, resultante unicamente de um silogismo. Em tal sentido, Reale salienta:

É necessário aprofundar o estudo dessa “experiência normativa”, para não nos perdemos em cogitações abstratas, julgando erroneamente que a vida do Direito possa ser reduzida a uma simples inferência de Lógica formal, como a um silogismo, cuja conclusão resulta da simples posição das duas premissas. Nada mais ilusório do que reduzir o Direito a uma geometria de axiomas, teoremas e postulados normativos, perdendo-se de vista os valores que determinam os preceitos jurídicos e os fatos que os condicionam, tanto na sua gênese como na sua ulterior aplicação.[20]

Ao se apreender esta dimensão axiológica no plano da experiência, os valores aí não são tratados como entidades meta-históricas, mas como afirmado por Cirell Czerna, em aprofundado estudo sobre Miguel Reale: “se realizam funcionalmente no próprio processo, numa concreção móvel unitária ao mesmo tempo, que não pode dar lugar a formalísticas abstrações reducionista ou isoladores”.[21]

Em conformidade com essa assertiva de Cirell Czerna, embasada na obra de Reale, não há como o estudioso do Direito ( sociólogo, filósofo ou jurista ) poder isolar, de forma absoluta – repise-se mais uma vez – os elementos fato, valor e norma e se obter um resultado científico satisfatório, sob pena de um regresso a um tempo anterior à tridimensionalidade concreta e dinâmica.

Reale faz questão de deixar claro que o direito é um só para todos os que o estudam, mas isso não quer dizer que se tenha apenas uma única Ciência do Direito, haja vista os vários “objetos de cognição que a experiência do direito logicamente possibilita”.[22]

Ora, a experiência jurídica, como estrutura tridimensional, precisa ser compreendida como forma de uma experiência tridimensional de natureza normativo bilateral-atributiva. Tal caracterização se torna necessária porque a experiência jurídica é feita não só de pessoas e das coisas pertencentes ao mundo, mas também das valorizações daí decorrentes.

A tridimensionalidade, ao trabalhar com a experiência jurídica, tem como um dos seus traços a própria atualização dos valores e o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico. Observando esta realidade, assinala Reale:

É para essa objetivação normativa que volve fundamental a atenção jurista, visando à atualização dos valores que nela se consagram. Já o “político do direito” ou o legislador, olhos atentos para experiência jurídica em geral, cuidam de aperfeiçoar o ordenamento em vigor, para adequá-lo às novas exigências da sociedade”.[23]

Fazendo referência a essa atualização ( modelagem ) dos valores em razão da experiência jurídica, afirma Reale:

A modelagem da experiência jurídica é feita, portanto, pelo jurista em contato direito com as relações sociais, como o faz o sociólogo, mas enquanto este se limita a descrever e explicar as relações existentes entre os fatos, em termos de leis causais ou motivacionais, o jurista opera mediante regras ou normas produzidas segundo o processo correspondente a cada tipo de fonte que espelha a solução exigida por cada campo de setores.[24]

4 - Dialética da complementaridade

Miguel Reale, ao analisar a denominada “dialética da complementaridade”, demonstra que o conhecimento está sempre aberto a novas possibilidades, tudo, pois, em decorrência de seu caráter dialético e, por, isso, de natureza relacional.[25] Ao trabalhar com este aspecto dialético de sua teoria, Reale em vero admite que o tridimensionalismo anterior à sua elaboração era “abstrato e estático”. Esse posicionamento do autor faz com que, no plano do conhecimento, não haja a redução do sujeito em objeto ou o contrário, tendo em conta que

(...) visto como algo haverá sempre a ser convertido em objeto e, ao mesmo tempo, algo haverá sempre a atualiza-se no tocante à subjetividade, através de sínteses empíricas que se ordenam progressivamente no processo cognoscitivo.[26]

Podemos precisar este caráter dialético e relacional da tridimensionalidade realeana porque no mundo dos valores e da praxis há uma intensa referibilidade, pois como descrito na teoria do jus-filósofo brasileiro a correlação existente entre sujeito e objeto é de complementaridade. Analisando esta correlação de implicação, observa Reale:

Tal correlação de implicação não pode jamais se resolver mediante a redução de uns aspectos nos outros: na unidade concreta da relação instituída tais aspectos mantêm-se distintos e irredutíveis, daí resultando a sua dialeticidade, através de “sínteses relacionais” progressivas que traduzem a crescente e sempre renovada interdependência dos elementos que nela se integram.[27]

Em passagem da sua obra “Filosofia do Direito”, Reale avalia com precisão a questão do processo dialético de complementariedade, a saber:

Na realidade, porém, fato e valor, fato e fim estão um em relação com outro, em dependência ou implicação recíproca, sem se resolverem um no outro. Nenhuma expressão de beleza é toda a beleza. Uma estátua ou um quadro, por mais belos que sejam não exaurem as infinitas possibilidades do belo. Assim, no mundo jurídico, nenhuma sentença é a Justiça, mas um momento de Justiça. Se o valor e o fato se mantêm distintos, exigindo-se reciprocamente, em condicionalidade recíproca, podemos dizer que há entre eles um nexo ou laço de polaridade e de implicação. Como, por outro lado, cada esforço humano de realização de valores é sempre uma tentativa, numa uma conclusão, nasce dos dois elementos um processo, que denominamos “processo dialético de implicação e polaridade”, ou, mais amplamente, “processo dialético de complementariedade”, peculiar à região ôntica que denominamos cultura.[28]

Ora, ao se pautar pelo caráter dialético da sua teoria da tridimensionalidade, Reale reconhece que o direito é uma realidade histórico-cultural, a qual não pode ser de forma alguma destacada da experiência social. Sobre tal situação teórica, alerta aquele mestre:

Mister é não olvidar que a compreensão do direito como “fato histórico-cultural” implica o conhecimento de que estamos perante uma realidade essencialmente dialética, isto é, que não é concebível senão comoprocessus, cujos elementos ou momentos constitutivos são fato, valor e norma, a que dou o nome de “dimensão” em sentido, evidentemente, filosófico, e não físico-matemático.[29]

Outro alerta de Miguel Reale diz respeito à importância da conduta na teoria tridimensional do direito, uma vez que “a experiência jurídica não se resolve em um fenômeno de conduta”, mormente porque o ato humano já se acha objetivado pela obra do espírito.[30]

Consigne-se que, ao se referir a ato humano objetivado, Miguel Reale está verdadeiramente fazendo alusão à “experiência histórico-cultural”, na qual distingue entre fato do direito, global e unitário ( acontecimento espiritual e histórico ) e o fato como dimensão da experiência. Quanto a essa distinção dos fatos, vale reproduzir as palavras do lente da Universidade de São Paulo:

Neste segundo caso a palavra fato indica a circunstância condicionante de cada momento particular no desenvolvimento do processo jurídico. Ora, fato, nesta acepção particular, é tudo aquilo que na vida do direito corresponde ao já dado ou já posto no meio social e que valorativamente se integra na unidade ordenadora da norma jurídica, resultando da dialeticidade desses três fatores o direito como “fato histórico-cultural”. [31]

Ao se enfrentar a teoria tridimensional do Direito, é preciso visualizá-la dentro de um processo essencialmente dialético, onde as regras jurídicas são compostas do material vivo da história. Assim, a norma – conforme nos é indicado por Reale – contém a correlação fático-axiológica, o que poderá determinar uma futura conversão em fato, haja vista um outro processo de integração normativa originado de novas exigências valorativas, a dizer:

Em suma, o termo “tridimensional” pode ser compreendido como traduzindo um processo dialético, no qual o elemento normativo integra em si e supera a correlação fático axiológica, podendo a norma, por sua vez, converte-se em fato, em um ulterior momento do processo, mas somente com referência e em função de uma nova integração normativa determinada por novas exigências axiológicas e novas intercorrências fáticas. Desse modo, quer se considere a experiência jurídica, estaticamente, na sua estrutura, quer em sua funcionalidade, ou projeção histórica, verifica-se que ela só pode ser compreendida em termos de normativismo concreto, consubstanciado-se nas regras de direito toda a gama de valores, interesses e motivos de que se compõe a vida humana, e que o intérprete deve procurar captar, não apenas segundo as significações particulares emergentes da “praxis social”, mas também na unidade sistemática e objetiva do ordenamento vigente.[32]

Cirell Czerna é enfático ao constatar que a ausência do princípio dialético da compreensão dialética da realidade jurídica importa na impossibilidade de se captar a unidade fundamental do direito como processo histórico-cultural. Referida impossibilidade, conforme o entendimento do exegeta da obra de Reale, é uma marca presente das teorias tridimensionais de natureza estática.[33]

5 – O Direito como experiência histórico-cultural

Neste ponto, Miguel Reale encara o Direito de um ângulo ético, isto é, do ponto de vista da práxis. Aqui, o processo é visto como diz o próprio Reale em termos de “experiência axiológica” ou “histórico-cultural”[34]. Ao analisar o Direito enquanto “historicismo axiológico”, Reale entende que sujeito e objeto se implicam e se relacionam, mas desta relação não resulta a redução de um pelo outro e nem que seja imaginável a existência de um dos termos sem a existência do outro. Esta implicação e relacionamento entre sujeito e objeto nos remete ao homem enquanto dever ser, que segundo Reale:

(...) é enquanto dever ser, mais jamais a sua existência esgota as virtualidades de seu projetar-se temporal axiológico, nem os valores são concebíveis extrapolados ou abstraídos do existir histórico (polaridade ética entre ser e dever ser ).[35]

Ora, a confirmação de Reale, quanto à inesgotabilidade das virtudes do homem, faz deste um ser radicalmente histórico e que, portanto, os valores só podem ser concebidos na sua historicidade. Dessa maneira, o homem somente toma consciência plena de seu atuar quando inserido numa dimensão histórica. Sob tal aspecto realça Reale:

(...) Qualquer conhecimento do homem, por conseguinte, desprovido da dimensão histórica, seria equívoco e mutilado. O mesmo se diga do conhecimento do direito, que é um expressão do viver, do conviver do homem.

Pensar, porém, o homem como ente essencialmente histórico, é afirmá-lo como fonte de todos os valores, cujo projetar-se no tempo nada mais é do que a expressão mesma do espírito in acto, como possibilidade de atuação diversificada e livre.[36]

Reale enfatiza, também, que a história não pode ser imaginada como algo acabado e que a própria categoria do passado só existe na medida em que haja possibilidade de futuro. O jus-filósofo brasileiro atenta, ainda, que o presente se constitui em tensão entre passado e futuro, e o dever ser “a dar peso e significado ao que se é e se foi”. Deste raciocínio Reale sublinha que estabeleceu uma correlação fundamentação entre valor e tempo, axiologia e história.[37] Essa questão é também explicitada de forma sintética na seguinte passagem de Reale:

Não se podendo conceber valor que jamais se realiza, nem valor que jamais se realize, nem valor que de todo se converta em realidade, há uma tensão permanente entre aquele e esta, tensão que, no plano cultural do Direito, é representada pela norma jurídica, fator integrante de valor e fato e fato. Dadas, porém, as apontadas características de realizabilidade e inexauribilidade dos valores, a norma jurídica nunca esgota o processo histórico do Direito, mas assinala os seus momentos culminantes.[38]

Nesse contexto, o mundo da cultura passa a ser “um patrimônio de atos objetivados no tempo”, que resulta no “acúmulo de obras”. Reale denomina o mundo da cultura como “mundo das intencionalidades objetivadas”.[39]

Insta observar que o historicismo de Reale não faz de sua teoria tridimensional uma teoria relativista, haja vista que o seu historicismo é aberto, ou seja, não há uma “determinante da história” a conformar o ato futuro numa condicionante inteiramente formada pelo passado. Esclarecendo a questão do denominado “historicismo aberto”, Reale acrescenta:

Para melhor determinação de meu pensamento sobre este ponto essencial parto da observação preliminar de que só o homem é um ser capaz de síntese. Os outros animais respondem a impulsos particulares e, no máximo, justapõem e congregam respostas reflexas, em função dos estímulos recebidos. Jamais se antecipam à particularidade dos impulsos numa antevisão consciente prevenida e intencional do futuro, superando o disperso da experiência, alçada esta a uma compreensão conceitual envolvente e diretora. Esse “poder de síntese”, como já se disse, não é senão a expressão do espírito como liberdade, pois o homem, na evolução cósmica, só se libertou do meramente natural na medida em que soube vir se impondo à natureza, servindo-se dela para os seus próprios fins.[40]

Em outra obra, Reale anota mais uma vez a improcedência das alegações de ser relativista à sua concepção da história do direito, senão vejamos:

Dessarte, sendo o processo histórico, governado pelo que se poderia denominar “a abertura angular axiológica da pessoa”, não tem sentido considerar-se relativista a minha compreensão da história do direito, que, sendo experiência de liberdade, não pode ser senão plural e problemática, insuscetível de ser reduzida a uma planificação sem alternativas. Se a história do direito tem um sentido, projeta-se ela do ser mesmo do homem, com todos os riscos da ventura e da aventura de sermos homens, cada um de nós subordinado, como ensinou Ortega y Gasset, ao irrenunciável e intransferível projeto de nós mesmos.[41]

Ora, realmente improcedente a alegação de que a concepção da história do Direito de Miguel Reale seja relativista, uma vez que não há como negar que seja o Direito uma Ciência da análise do concreto, de uma disciplina que sofre modificações no tempo e no espaço. Isto é, ao se deparar com o mundo, o homem não o encontra de forma estática, mas antes como uma realidade a ser pensada e vivida, segundo um referencial de valores e princípios. Frise-se que a realidade cultural se reporta ao homem como ser livre, que atua e se comporta segundo inúmeras opções.

Ressalte, ainda, que Miguel Reale afirma que “O Direito é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo”[42].

6 – Modelos do Direito

A “teoria dos modelos do direito”, construída por Miguel Reale, como contribuição à sua teoria tridimensional, não tem por alvo a suplantação da “teoria das fontes do direito”, mas antes ser um complemento desta.[43] Conforme nos relata o autor, a “teoria dos modelos do direito” se distingue em “modelos jurídicos” e “modelos doutrinários”. Os “modelos jurídicos” são aqueles de “natureza prescritiva, inseparáveis das fontes de que promanam, sendo, de origem legal, costumeira, jurisprudencial ou negocial”.[44] Já os modelos doutrinários, de acordo com o raciocínio do mestre Reale são os “de natureza hermenêutica, não necessariamente vinculados às fontes”.[45]

Interessante observar que Miguel Reale ao construir sua “teoria dos modelos do direito” abstrai a doutrina das fontes do direito, pois entende que a doutrina tem por função unicamente dizer o que as fontes e os modelos significam. Dissertando sobre a superação do dilema de que a doutrina seja ou não fonte, Reale sintetiza:

“Põe-se, portanto, fim a vexata quaestio sobre se a doutrina é ou não fonte do direito, por ter ela natureza própria de caráter hermenêutico, bem diversa do que acontecia ao tempo em que o saber dos jurisconsultos possuía força vinculante.”[46]

Do fragmento textual acima, depreende-se com clareza que Reale parte do pressuposto de que para se constituir em fonte do direito é necessário a coercibilidade como qualidade, ou seja, sem essa força cogente não há como se admitir a doutrina como fonte do direito. Reproduzimos o raciocínio de Reale no que tange a tal questão:

Cumpre, por conseguinte, ter presente que, a propósito do sentido ou valor das normas jurídicas vigentes, são formuladas pelos juristas interpretações de natureza doutrinária ou científica, destituídas de força cogente, limitando-se sua função a dizer o que os modelos significam. Como variam os critérios e paradigmas interpretativos, as proposições e modelos hermenêuticos – que no seu todo compõem o corpo da doutrina, ou o Direito Científico, conforme terminologia de Savigny – dependem da posição de cada exegeta, os quais se distribuem em distintas teorias ou correntes de pensamento.

É por essa razão, pela não-precritibilidade dos modelos hermenêuticos, que não considero a doutrina uma das fontes do direito, o que não lhes diminui, absolutamente, a relevância, visto como é tarefa da doutrina esclarecer a significação das fontes de direito, para saber, por exemplo, se elas todas se reduzem, em última análise, à lei; se elas existem em numerus clausus; se entre elas há uma hierarquia etc.[47]

Saliente-se que Miguel Reale refere a função de vanguarda da doutrina, a saber:

Consoante já observei, a doutrina exerce uma função de vanguarda, pois, conforme será logo mais examinado, além de ela dizer o que as normas jurídicas efetivamente significam ou passam a significar ao longo de sua aplicação no tempo, cabe-lhe enunciar os princípios gerais que presidem a vigência e eficácia das normas jurídicas, bem como conceber os modelos hermenêuticos destinados a preencher as lacunas do sistema normativo, modelos esses convertidos em modelos prescritivos graças ao poder constitucionalmente conferido ao juiz.[48]

Ultrapassada esta questão concernente à doutrina enquanto fonte ou não de direito, vejamos a compreensão de Reale em relação às fontes de direito propriamente ditas.

De acordo com Miguel Reale, a fonte de Direito implica num conjunto de determinados pressupostos de validade, que precisam ser obedecidos para a devida produção de prescrições normativas. Ou seja, a fonte de Direito só se tornará obrigatória com o devido acatamento daqueles pressupostos de validade.[49] É bem de ver, ainda, que as fontes do direito são visualizadas sob um ângulo fechado, isto é, há um determinado número de fontes do direito reconhecidas em conformidades com os pressupostos de validade susomencionados.[50] Sendo que tal reconhecimento de validade é delineado pela Constituição.[51]

Note-se que Miguel Reale faz alusão à denominada “juridicidade”[52]das fontes do Direito, que se traduz na qualidade decorrente do reconhecimento das fontes de Direito como tais. Reale anota que outros autores tem uma visão diversa da normativa. Seriam aqueles que compreendem as fontes do Direito sob o prisma fisicalista ou sociológico. Estes autores, segundo Reale, afirmam que as fontes de Direito ocorrem e se desenvolvem “independentemente de qualquer prévio requisito normativo, obedecendo tão-somente a “causas naturais” ou a diversos centros de interesse que só podem ser objeto de determinação à luz de uma análise de caráter sociológico.”[53]

Miguel Reale enfatiza que só a noção normativa das fontes do Direito corresponde à natureza do Direito, estando a concepção fisicalista ou sociológica numa dimensão metajurídica. Vale a pena reproduzir o raciocínio do jus-filosofo quanto ao confronto entre a posição normativa e a posição metajurídica:

Desse modo, a teoria das fontes se transfere para um plano metajurídico, obedecendo a uma pluralidade imprevisível de focos de irradiação de regras, cuja juridicidade caberia aos juristas e juízes reconhecer e aplicar segundo critérios postos por distintas ciências sociais. Penso eu que só a primeira noção de fonte antes examinadas corresponde à natureza do Direito, o qual é sempre normativo, muito embora não seja exclusivamente normativo, como o sustentou Kelsen com sua Teoria Pura de Direito, isto é, desvencilhado de tudo que não seja normativo.[54]

Dentre os modelos jurídicos analisados por Reale temos os seguintes: os modelos jurídicos legais, o modelo jurídico costumeiro, os modelos jurisdicionais e os modelos jurídicos negociais.

Os modelos jurídicos legais ( modelos legislativos ) dizem respeito às leis, aos decretos legislativos e resoluções. A lei aí é entendida tanto numa acepção ampla como numa acepção restrita. Característica desse modelo jurídico é a sua generalidade e universalidade, isto é, um modelo de irradiação erga omnes. Dito modelo se situa em grau destacado em relação aos demais, só tendo como limite a Lei Fundamental. Miguel Reale, ao tratar dos modelos jurídicos legais, pondera que, do ponto de vista do valor, “todas as fontes se equiparam, dependendo do respectivo conteúdo, ou seja, da qualidade de seus modelos, a sua primazia axiológica.”[55]Esclarecendo melhor a questão referente ao aspecto lógico e axiológico desse modelo jurídico, Reale acentua:

Parece-me importante assinalar a relevância da distinção ora feita entre anterioridade ou supremacia de uma fonte de direito, em relação às outras, de um ponto de vista lógico ou axiológico. Logicamente, isto é, sob o ângulo lógico-formal, a lei é sempre a fonte preeminente no sistema jurídico, mesmo porque ela pode ser lei de ordem constitucional, mas, do ponto de vista axiológico, uma fonte subordinada pode ter maior significação ética ou econômica do que a atribuída à lei à qual ela se subordina. Isto demonstra que o estudo dos modelos jurídicos deve ser tanto no plano lógico quanto no axiológico, o que revela a riqueza de perspectivas do ordenamento jurídico.[56]

No que tange ao modelo jurídico costumeiro, Reale alerta que seria “uma visão apequenada e errônea” considerar as normas consuetudinárias não suscetíveis de serem tomadas enquanto modelo jurídico tão-somente porque vinculadas a particulares usos e costumes.[57]

É principalmente na seara do Direito Econômico que os usos e costumes mais alimentam os modelos jurídicos. Na atividade econômica cotidiana resultam as mais ricas práticas mercantis, o que ocasiona o aparecimento de inúmeros ajustes e compromissos entre seus parceiros. Tais atividades terminam por se impor na sociedade e adquirirem a qualidade de juridicidade. Em outras palvras, as sua práticas passam a ser reconhecidas pelos seus próprios parceiros e pelo próprio Estado. Constatando essa realidade, Miguel Reale assinala com precisão:

Ao contrário do que se pensa, é imenso o número de modelos jurídicos costumeiros, não só no plano das relações internacionais, como no tocante a usos e costumes de ordem econômica, na esfera cambial e bancária. Durante muito tempo a Junta Comercial de São Paulo, obedecendo a uma praxe que vinha desde 1890, promovia o assentamento de usos e costumes mercantis vigentes no Estado, chegando mesmo a publicar “consolidações”, como as relativas às praças da Capital e de Santos.[58]

Em relação aos modelos jurisdicionais, Miguel Reale faz questão de sublinhar a sua relevância para o “mundo normativo”, e ressalta que paradoxalmente “sejam poucos os estudos sobre o conceito de jurisdição como fonte reveladora de normas jurídicas.[59]

Ponto acentuado muito bem por Miguel Reale é a assertiva de que a “A jurisdição é, pois, antes de mais nada, um poder constitucional de explicitar normas jurídicas, e, entre elas, modelos jurídicos. Consoante o jus-filósofo brasileiro, esse modelo jurídico funciona de duas formas, que passamos a reproduzir do texto de Reale:

Esse poder decisório se desenvolve de duas formas distintas: normalmente, como exercício da jurisdição enquanto realização das normas legais adequadamente aos casos concretos, isto é, em função das peculiaridades e conjunturas próprias da espécie de experiência social submetida a julgamentos; e, excepcionalmente, no exercício da jurisdição enquanto poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna no ordenamento.[60]

Dessa distinção acima, apresentada por Miguel Reale, temos a produção de duas espécies de modelos jurídicos jurisdicionais, a dizer: um primeiro vinculado ao exercício normal da jurisdição, que dá ensejo ao denominado modelo subordinado e um segundo vinculado ao exercício excepcional da jurisdição, que origina o modelo autônomo. Expliquemos cada um deles em sintonia com o pensamento de Miguel Reale.

No modelo subordinado, se exige do juiz uma atividade de subsunção, pois aqui aplica-se ao caso concreto em razão daquilo que se configura abstratamente. Já no modelo denominado autônomo, que Reale intitula de “modelos jurisdicionais por excelência”, ocorre a correlação de dois princípios fundamentais, tal seja: “a – o juiz não pode deixar de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei” e “b – quando a lei for omissa, o juiz procederá como se fora legislador.”[61]

Reale, escudado na história do Direito nacional, exemplifica como os modelos jurisdicionais supriram as deficiências de modelos legais, a título de se afastar uma injustiça no caso concreto, a saber:

“(...) exemplo de jurisdição criadora temos com a consagração, pelo Supremo Tribunal Federal – graças sobretudo ao Ministro Pedro Lessa da tese, sustentada por Rui Barbosa, do emprego do habeas corpus para a defesa da “posse de direitos pessoais” violados por abuso ou desvio, numa época em que tais direitos ainda não eram salvaguardados por mandado de segurança. Com o advento deste, o modelo da posse voltou ao seu leito normal, como exteriorização de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Também pretoriano foi o modele jurídico disciplinador das relações entre concubinos, dada a inexistência de disposições legais sobre a espécie, preservando os direitos de quem houvesse, por seu trabalho contribuído para a formação de uma sociedade de fato, merecedora de amparo. Desse modo, o concubinato perdeu a sua configuração pejorativa para adquirir contornos de juridicidade, em função dos fatos e circunstâncias.[62]

Do fragmento textual acima de Miguel Reale, depreende-se que o modelo jurisdicional se converte em instrumento eficaz de suprimento das deficiências dos modelos legislados, máxime no caso desses modelos legais serem lacunosos. O jus-filósofo alerta de maneira contundente sobre a importância dos operadores jurídicos zelarem pela oxigenação do mecanismo jurisdicional, o que implica na sua constante revisão, tendo em conta as mudanças supervenientes no sistema legal, bem como em razão da “emergência de novos valores sócio-econômicos, ou, por melhor dizer, culturais”.[63] Neste passo, Reale é preciso e altamente atual com os novos estudos da hermenêutica jurídica, devendo, por isso, ser lida constantemente sua obra, tendo em vista a produção de novas significações para o aperfeiçoamento da disciplina exegética. A citação a seguir materializa bem a dimensão atual dos estudos de Reale para o aperfeiçoamento da hermenêutica jurídica:

Essa alta visão do Poder Judiciário pressupõe, é claro, o superamento de uma concepção passiva da função dos magistrados, e, por conseguinte, da sentença como automática aplicação dos ditames da lei ao caso concreto, sem a participação criadora do juiz. Os estudos de Hermenêutica, uma das formas de conhecimento mais expressivas de nosso tempo, vieram demonstrar que o ato interpretativo implica sempre uma contribuição positiva por parte do exegeta, mesmo porque o ato de julgar, talvez o mais complexo e dramático dentre os atos humanos, importa no dever do juiz de situar-se, solitariamente e corajosamente, perante a prova dos autos e os imperativos da lei, a fim de enunciar o seu juízo, reflexo de sua amadurecida convicção e de seu foro íntimo. Poder-se-ia dizer que o juiz torna-se eticamente alheio aos rumores da rua para que possa justamente se pronunciar sobre a causa, o que envolve o emprego de todas as virtudes de sua personalidade, abstraindo-se de enganosas pressões imediatas para poder captar a essência do justo, tal como este vai historicamente se configurando.[64]

Como última categoria dos modelos jurídicos, Miguel Reale indica os que se originam do acordo de vontades, isto é, aqueles decorrentes das iniciativas individuais.[65] Consoante Miguel Reale, “a fonte negocial é dos canais mais relevantes da revelação do Direito”.[66]Este modelo negocial se visualiza hoje sob o prisma constitucional, uma vez que os princípio da livre iniciativa e da livre concorrência estão plenamente agasalhados pela Lei Fundamental de 1988, o que importa na proibição de o legislador ordinário vir a suprimir o “mundos dos contratos”.[67] Miguel Reale, com a sua precisão intelectual, constata que os modelos negociais “representam a exteriorização ou a atualização da liberdade como valor supremo do indivíduo, tanto como cidadão como produtor”.[68] Aspecto bem delineado por Miguel Reale quanto aos modelos negociais se refere ao respeito que esses modelos jurídicos devem ao devido processo legal na dimensão da liberdade dos cidadãos enquanto pactuantes de um negócio jurídico, pena de resultarem inválidos, a saber:

É preciso, outrossim, ter presente que, em pé de igualdade com as demais fontes do direito, também a fonte negocial, para que sejam válidas as normas e modelos através dela emanados, deve obedecer ao seu devido processo legal, que cabe a cada disciplina jurídica determinar, em consonância com as suas peculiaridades. Do ponto de vista da Teoria Geral do Direito, o pressuposto processual por excelência da fonte negocial diz respeito à liberdade real de decidir de todos os que participaram da instauração do negócio jurídico, pois fonte negocial e autonomia da vontade são termos que reciprocamente se implicam.[69]

Insta observar, com base na “Teoria dos Modelos de Direito” de Miguel Reale, que os modelos negociais não podem ser constituídos em conflito com os modelos legais, o que, segundo o jus-filósofo brasileiro, implica no reconhecimento de que há uma dimensão hierárquica entre os modelos jurídicos do ponto de vista lógico-sistemático.[70]

7 – Conclusões

Após o enfrentamento das questões que nos propusemos a analisar, a dizer, a pesquisa da experiência jurídica como estrutura tridimensional, da dialética da complementaridade, do Direito como experiência histórico-cultural e dos modelos do Direito, temas chaves da “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale, tivemos por suma de nosso trabalho o seguinte:

1 - As formulações anteriores à teoria tridimensional realeana eram reducionistas e unilineares, especialmente a mentalidade do século XIX no que tange ao entendimento do fenômeno jurídico e dos demais fenômenos sociais. Já no século XX, teremos uma perspectiva concreta e integradora em relação aos estudos de natureza social.

2 – É bem de ver que a unidade ou a correlação essencial existentes entre os aspectos fático, axiológico e prescritivo do Direito não foram de imediato compreendidos pelos jus-filosofos e juristas.

3 – Anterior às formulações tridimensionais do Direito havia um estudo estaque de fato, valor e norma, sem que se operasse uma correlação entre os três elementos.

4 – Mister notar que a teoria da tridimensionalidade do direito não apareceu de pronto, mas fez-se em razão de uma longa maturação e autocrítica.

5 – A “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale vai surgir na década de 40 do século XX juntamente com a “Teoria Tridimensional do Direito” do alemão Wilhem Sauer, sem que um tivesse conhecimento do outro.

6 – Apesar de certas similaridades entre as duas teorias – a de Reale e a de Sauer – a concepção do jus-filósofo alemão é de natureza estática, ou seja, incapaz de dar-nos uma unidade do Direito. Diferentemente, a ‘Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale se traduz em um processo dialético, havendo nela um momento normativo que integra em si e supera a correlação fático-axiológica. Por isso, diz-se que a teoria tridimensional de Reale é de natureza concreta e dinâmica.

7 – A experiência jurídica como estrutura tridimensional rejeita o tridimensionalismo genérico e abstrato, uma vez que a experiência aí é apreendida como estado vivencial do indivíduo, do mundo do homem e da sua consciência.

8 – No que respeita à dialética da complementaridade, esta pode ser compreendida como um liame entre sujeito e objeto dentro de um processo relacional.

9 - O direito como experiência histórico-cultural se visualiza como realidade concreta e mutável na dimensão temporal e espacial, daí a historicidade do homem. O Direito é uma criação cultural, mormente sob o prisma de um espírito objetivado.[71]

10 – A teoria dos modelos de Direito de Miguel Reale tem por escopo uma renovação das fontes do direito. Isto é, o que deseja o jus-filosofo brasileiro é completar a teoria das fontes. Segundo Miguel Reale, os modelos do Direito são distinguidos em modelos jurídicos ( de natureza prescritiva ) e modelos doutrinários ( de natureza hermenêutica ).

11 – Observe-se que Miguel Reale entende que a doutrina não constitui fonte de direito, pois dela não decorre uma força vinculante, tendo em vista faltar-lhe a coercibilidade para tanto.

12 – Consoante Miguel Reale, temos os seguintes modelos de Direito: o modelo jurídico legal (leis, decretos legislativos, resoluções e o texto constitucional ), o modelo jurídico costumeiro (normas consuetudinárias, usos e costumes ), modelo jurisdicional ( decisões jurisdicionais ) e o modelo negocial ( acordos de vontade, pactos, etc ).

8 – Bibliografia

CZERNA, Renato Cirell. O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999.

MACEDO, Ubiratan Borges. Miguel Reale ou a Maturidade da Cultura Brasileira, In : ZILLES, Urbano ( coord. ), PAIM, Antonio, DE BONI, Luis A., MACEDO, Ubiratan B.de ( orgs. ). Miguel Reale: estudos em homenagem a seus 90 anos. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2000.

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_____________. Direito Natural/Direito Positivo, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1984.

TEIXEIRA, António Braz. Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro, In: LÁFER, Celso & FERRAZ JR., Tércio Sampaio ( orgs. ), Direito, Política, Filosofia e Poesia/Estudos em homenagem ao professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1992.



[1] António Braz Teixeira, Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro, In Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr ( orgs. ), Direito, Política, Filosofia e Poesia, Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale no seu Octagésimo Aniversário, Editora Saraiva, São Paulo, 1992, p. 256. Nesta obra, o jus-filósofo lusitano lembra que na obra de Miguel Reale “o carácter tridimensional não é específico do direito, porquanto é comum a toda a restante realidade normativa, já que no mandamento religioso, no preceito moral ou nos usos sociais se podem também surpreender a dimensão axiológica, o momento normativo e a manifestação empírica, Reale não se esquece de esclarecer que a conduta jurídica se individualiza à face das restantes por se configurar como um momento bilateral-atributivo da experiência social.

[2] 123.

[3] Sobre o perfil cultural da obra de Miguel Reale ver o ensaio “ Miguel Reale ou a Maturidade da Cultura Brasileira”, de Ubiratan Borges de Macedo, contido no livro “Miguel Reale, Estudos em Homenagem a seus 90 anos, publicado pela EDIPUCRS, Porto Alegre, 2000.

[4] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p.. 137.

[5] Ibidem, p. 10.

[6] Ibidem, p. 17.

[7] Ibidem, p. 18.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibiden.

[12] 511.

[13] Ibidem, p. 511.

[14] Miguel Reale, O Direito como Experiência, 2ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. XV.

[15] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p. 513. .

[16] Interessante observar que os estudos de Reale e Sauer deram-se no mesmo contexto cronológico sem que um tivesse conhecimento do outro.

[17] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p. 513.

[18] Ibidem, p. 542.

[19] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 91

[20] Ibidem, p. 564.

[21] Renato Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed., Editora Saraiva, 1999, p. 127.

[22] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, 2003, p. 56.

[23]Miguel Reale, O Direito como Experiência, Editora Saraiva, São Paulo, p. 121.

[24] Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1994, p. 41.

[25] Ibidem, p. 72.

[26] Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 17.

[27] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p. 571.

[28] Ibidem.

[29] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 75.

[30] Ibidem, p. 76.

[31] Ibidem, p. 77.

[32] Ibidem.

[33] Renato Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, p. 53.

[34] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 79.

[35] Ibidem, p. 80.

[36] Ibidem, p. 90

[37] Ibidem, p. 81.

[38] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p. 572.

[39] Ibidem.

[40] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 84.

[41]Ibidem, p. 82.

[42] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p. 574.

[43] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 153.

[44] Ibidem.

[45] Ibidem.

[46] Ibidem.

[47] Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1994, p. 107.

[48] Ibidem.

[49] Ibidem, p. 14.

[50] Ibidem.

[51] Ibidem.

[52] Ibidem.

[53] Ibidem, p. 15.

[54] Ibidem.

[55] Ibidem, p. 67.

[56] Ibidem.

[57] Idem, p. 68.

[58] Ibidem.

[59] Ibidem, p. 69.

[60] Ibidem, p. 70.

[61] Ibidem.

[62] Ibidem.

[63] Ibidem, p. 72.

[64] Ibidem.

[65] Ibidem, p. 73.

[66] Ibidem.

[67] Ibidem.

[68] Ibidem, p. 74.

[69] Ibidem.

[70] Ibidem, p. 75.

[71] Miguel Reale, Variações 2, 1ª ed., Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2003, p. 26. Nesta recém-editada obra do jus-filosofo brasileiro, analisando a questão da cultura, ele anota que”...podendo-se afirmar que a cultura é “objetivação das intencionalidades humanas ao longo da história”, a partir da noção de que ” conhecer é conhecer algo no mundo”.

Cunha e Silva Neto