terça-feira, 22 de setembro de 2009

Breves anotações sobre a nova redação do artigo 265 do Código de Processo Penal Brasileiro e o “abandono” do processo pelo defensor (advogado)

É sempre louvável que o legislador infraconstitucional esteja sempre atento à realidade social de seu tempo, modificando o ordenamento jurídico quando necessário ao seu aperfeiçoamento. Todavia, a bem de cumprir seu papel de revisor da legislação ordinária, o que não pode é atropelar garantias e prerrogativas da advocacia em geral, bem como desconsiderar o sistema constitucional e legal como um todo. Neste sentido, a Lei nº 11.719/2008, dando nova redação ao artigo 265 do CPP, deixou de levar em conta princípios constitucionais e institucionais da Advocacia.
A redação do artigo 265 do CPP e de seu parágrafo único estava inalterada há décadas. De certa forma, era uma disposição caduca, principalmente em razão da indeterminação da expressão “abandonar o processo” e a previsão de uma multa fixada em mil-réis. É claro que a caducidade pela falta de aplicação da norma, segundo majoritária doutrina da Teoria Geral do Direito, não implica na sua revogação. Mas não podemos negar o fato que o referido dispositivo foi contrastado por uma normatividade posterior que colocou sob reservas a sua aplicação hodierna, máxime após a promulgação da Constituição da República de 1988 e do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB (Lei nº 8.906/1994). Tal dispositivo não era, assim, muito comentado em doutrina e jurisprudência, certamente em razão da sua desatualização normativa e fática. Daí que agora com a sua nova redação – com uma relativa modificação do caput do artigo 265 acrescido da criação de dois parágrafos – houve nosso despertar sobre as conseqüências jurídico-processuais da sua admissão legislativa.
Inicialmente, frise-se que o legislador processual perdeu uma ótima oportunidade de aprimorar a redação do mencionado dispositivo, porquanto na redação anterior usava-se da expressão imprecisa “abandonar o processo”. Na nova redação do artigo 265 do CPP, redesenhada pela lei nº 11.719/2008, o legislador processual deixou intacta a expressão imprecisa “abandonar o processo”, acrescentando ao seu caput dois parágrafos, que, também, não conseguem conceituar satisfatoriamente o fenômeno processual do “abandono” no processo penal pelo defensor.
Em razão dessa imprecisão do artigo 265 e seus parágrafos do CPP, em pese a sua nova redação, quando se daria, em verdade, o fenômeno processual do “abandono” no processo penal pela defesa? O Código de Processo Penal Brasileiro conceitua esta situação fática? Fazendo uma leitura de cabo a rabo do Código de Processo Penal Brasileiro, o leitor atento não encontrará uma só linha sobre a conceituação do “abandono” do processo pelo defensor, simplesmente porque o legislador originário não o fez e o legislador, presumivelmente mais atualizado da Lei nº 11.719/2008, também não se preocupou em precisá-lo.
Na redação antiga do artigo 265 do CPP, havia apenas um parágrafo único, que fazia menção à “falta de comparecimento do defensor”, indicando que “o abandono” do processo penal pelo defensor dar-se-ia mediante a ausência deste a um determinado ato processual. Mas, de toda sorte, era uma redação insuficiente e imprecisa na descrição desse fenômeno processual. O entendimento do que fosse “abandono” no processo penal pelo defensor ficava relegado à discricionariedade judicial. O julgador poderia entender, assim, que apenas uma ausência a um determinado ato pelo defensor constituído ou dativo fosse tachada de “abandono” do processo ou que fossem necessários reiterados comportamentos do defensor caracterizadores de alguma modalidade de desídia na condução defensiva do processo em face de seu cliente, chegando às raias de torná-lo indefeso.
Já na nova redação do artigo 265 do CPP foi realizada uma modificação do seu caput acrescido de parágrafos, indicando, principalmente por intermédio do parágrafo 1º, que a idéia agora é considerar o “abandono” do processo quando o defensor não comparecer à audiência determinada pelo juízo e, sem que houvesse por parte daquele, prévia comunicação qualitativamente considerada pelo magistrado como sendo justificável.
Assim, a nova redação do artigo 265, com os seus novos parágrafos, parece tentar apontar no sentido de que o conceito de “abandono” no processo penal esteja estritamente vinculado com a ausência injustificada do defensor à audiência agendada pelo órgão jurisdicional.
De imediato, denota-se que - especialmente através dos dois parágrafos - de verdadeiro “abandono” não se trata, mas, sim, de ausência injustificada do defensor a uma audiência determinada pelo juízo. Em primeiro lugar, porque o fenômeno processual do “abandono” tem uma dimensão jurídica significativamente muito mais grave do que a ausência a um ato processual, verbi gratia, no caso de defensor constituído ou dativo deixar de comparecer a diversos atos do processo, bem como deixar de apresentar todas as manifestações necessárias à caracterização de uma efetiva defesa técnica. O defensor que deixa de comparecer a uma audiência, ainda que de forma injustificada, não abandona tecnicamente o processo, mesmo porque não fica impedido de permanecer zelando pelos futuros atos e manifestações processuais pertinentes ao seu mister.
Frise-se que, no caso de advogado constituído, ainda que haja algum dado caracterizador aparente de estar o réu indefeso, como na situação de verdadeiro “abandono”, o magistrado precisa ser altamente prudente e cauteloso no “possível” afastamento do advogado constituído, máxime porque neste caso há um vínculo contratual entre cliente/réu e advogado/defensor, que exige a imperativa manifestação do réu que constituiu diretamente seu defensor sobre a possibilidade de seu afastamento, sob pena de violação ao devido processo legal e, quiçá, responsabilização do magistrado que indevidamente afastou o defensor constituído à revelia do réu. É claro que no caso de defesa dativa, naturalmente nomeada pelo magistrado, não há que se falar em vínculo contratual, e aí, em razão desse munus público, conferido através da indicação judicial, o julgador terá uma maior liberdade no afastamento da defesa dativa.


A inconstitucionalidade da multa prevista no artigo 265 do CPPB


No que concerne à multa ao defensor (advogado), que “abandonar” o processo (rectius, ausência à audiência), o legislador da Lei nº 11.719, a título de atualizar os valores da multa prevista no antigo artigo 265 do CPP, estabeleceu um desproporcional e excessivo novo valor ao defensor que deixar de comparecer (e não abandonar o processo, como enfatizamos linhas atrás) sem justificativa reconhecida pelo juiz. Agora, o defensor ausente, sem justificativa, estará sujeito à aplicação de uma pena de multa que variará entre 10 (dez) até o limite de 100 (cem) salários mínimos. Hoje, por exemplo, um advogado que fosse penalizado com a mencionada multa no seu limite máximo, poderia sofrer uma multa de R$ 41.500,00 (quarenta e um mil e quinhentos reais). Ora, a possibilidade de o juiz aplicar uma multa, pela ausência injustificada do defensor, em valor que pode implicar em sério risco à sua integridade patrimonial, haja vista que tal valor será futuramente executado pelo ente fazendário, cerceará o próprio exercício livre da advocacia. Pois não haverá advogado que vá exercer sua defesa técnica na esfera criminal sabedor que eventualmente poderá ser penalizado por uma multa, cujo valor colocará em risco à própria integridade de seu patrimônio privado, mormente porque o juiz pode, face à ausência do defensor, entender que a justificativa do profissional não procede, ainda que as suas razões tenham ares de plausibilidade.
Esta multa poderia ter algum sentido quando da promulgação original do Código de Processo Penal. À época, a multa aplicada parecia ter um nítido caráter disciplinar. Isto é, o magistrado aplicava a multa ao advogado pelo suposto abandono do processo. Ocorre que com a nova promulgação da Constituição de 1988 e da vigência do novo Estatuto da Advocacia houve uma nova leitura de todo o sistema legal. A normatividade infraconstitucional, por exemplo, ou era compatível com a nova Carta Política ou, ao contrário, não era recepcionada. Já em relação à legislação ordinária posterior à Constituição de 1988, dando efetividade à recém inaugurada normatividade constitucional, poderia haver revogação da legislação infraconstitucional desde que a nova lei assim o dissesse de forma expressa ou regulasse a matéria de forma inteiramente nova. Nesse sentido, a multa prevista no artigo 265 do CPP – e mesmo a sua nova redação originada da lei nº 11.719/2008 – é incompatível com a proporcionalidade e razoabilidade constitucionais, pois vincula, em vero, o exercício da advocacia criminal à possibilidade injurídica do pagamento de multa determinada por quem não é o juiz natural do processo administrativo de ética e disciplina do advogado. Lembremos que atualmente o único órgão possível de censurar o advogado é o Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme normas decorrentes do artigo 68 e seguintes da lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB). Ora, levando-se em consideração que a aplicação de multa prevista no artigo 265 do CPP exige logicamente e antecedentemente um juízo avaliativo sobre ser o suposto “abandono” do defensor (advogado) classificável ou não como desídia (modalidade de abandono), teremos a usurpação do juízo deontológico (natural) da conduta ético-comportamental do advogado, produzindo uma superposição de juízos. A não se visualizar essa superposição de juízos sobre a conduta ética do advogado, qual seria então a natureza jurídica da multa prevista no artigo 265 do CPP? Teria natureza penal? Teria natureza administrativa? Para quem enveredar sobre o significado dessas naturezas jurídicas, temos o seguinte questionamento: como aplicar uma pena de multa ao defensor (advogado) sem que o mesmo dispositivo estabeleça uma fase de defesa e instrução probatória para tanto? E mesmo que fosse admissível (apenas em tese!) essa possibilidade, dita fase seria feita dentro do mesmo processo penal onde o defensor exerce a defesa de outrem? E ainda dentro dessas perplexidades, qual o recurso cabível da decisão que impõe a multa ao advogado que “abandona” o processo? Sim, qual o recurso? Pois admitindo que seja necessária uma fase de defesa, há necessidade da previsão do recurso contra a aplicação de multa constante da nova redação do artigo 265 do CPP. Infelizmente, a nova redação do artigo 265 do CPP não prevê nem a via de defesa do advogado contra a multa e nem o recurso próprio contra aquela anômala sanção processual. Nesse sentido, a não previsão do contraditório, de ampla defesa, com os recursos e meios inerentes a ela, faz da multa prevista no artigo 265 do CPP, segundo a modificação da Lei nº 11.719/2008, violadora das normas decorrentes do inciso LV, do artigo 5º da Constituição da República de 1988, e, portanto, inconstitucional sua disposição ordinária.
Tais questionamentos se impõem na medida em que sob o pálio da normatividade constitucional, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, são exigíveis tantos nos processos judiciais como nos processos administrativos. Dessa forma, em uma ou outra natureza, haverá sempre a exigibilidade de preservação da ampla defesa do defensor (advogado), quando lhe aplicada a multa do artigo 265 do CPP. E não se diga que a justificação prevista supriria ou seria manifestação da ampla defesa na aplicação da mencionada multa, pois verdadeira ampla defesa – ainda que administrativa – exige quando necessária instrução probatória, inclusive com oitiva de testemunhas a referendar a justificativa de ausência ao ato processual do defensor (advogado).
Interessante observar que o artigo 264 do CPP, regulador da aplicação de multa ao advogado que não cumpre com a “obrigação” de patrocinar defesa após a nomeação do juiz, não sofreu nenhuma atualização dos valores também estabelecidos em mil-réis. Qual seria, então, a razão para a omissão do legislador processual penal da Lei nº 11.719/2008 ter se omitido em se valer do mesmo ímpeto atualizador monetário na nova redação do artigo 265 do CPP? Antes desta resposta, é preciso salientar que o artigo 264 do CPP tinha como escopo garantir aos acusados, especialmente aqueles hipossuficientes, o direito a um profissional responsável pela defesa técnica. O juiz nomeava o advogado ou o solicitador, e estes eram obrigados de forma autoritária a aceitar o encargo, sob pena de multa, casos se negassem a cumpri-lo. Ou seja, o artigo 264 do CPP, assim como precedente artigo 265, caput, previam a aplicação de multa ao defensor (advogado). Todavia, com a estruturação de uma nova ordem constitucional e das normas ordinárias posteriores responsáveis pela a essa nova realidade, o artigo 264 do CPP Mas retornando ao questionamento a pouco suscitado: por que o artigo 264 do CPP não sofreu o mesmo ímpeto atualizador monetário do legislador processual penal da lei 11.719/2008? Arriscaríamos a apresentar duas razões para tanto. A primeira é que o artigo 264 do CPP não foi recepcionado pela Constituição da República de 1988, porquanto ao se prever que a organização da Defensoria Pública é encargo da União e dos Estados, a responsabilidade do cumprimento da defesa criminal dos hipossuficientes passou a ser dos órgãos criados por aqueles entes federativos. Não cabe mais o patrocínio obrigatório e irrestrito – decorrente de nomeação judicial - em processos criminais aos advogados, ainda mais sob o crivo de uma autoritária pena de multa. E se o advogado não aceitar a nomeação, a eventual aplicação de multa é inconstitucional. A segunda é que, como que um complemento das normas decorrentes do artigo 134 e seus parágrafos da nossa Lei Fundamental de 1988, constante do inciso XII do artigo 34 (Das Infrações e Sanções Disciplinares) do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), só haverá em tese violação disciplinar do advogado que deixar de patrocinar assistência jurídica, quando houver a impossibilidade da Defensoria Pública.
Denota-se que o advogado só seria em tese “obrigado” a prestar assistência jurídica (dativa ou ad hoc) quando demonstrado em decisão judicial fundamentada que a Defensoria Pública não pode fazê-lo. Ou seja, atualmente o advogado não é mais obrigado a prestar patrocínio criminal obrigatório sem que o juízo apresente a inviabilidade da Defensoria Pública. Sem dúvida, nessa situação haverá a seguinte pergunta: e se no Estado nunca for organizada a Defensoria Pública? Serão os advogados eternamente obrigados a aceitar nomeações de natureza dativa ou ad hoc, sob a pena de multa inconstitucional? Cremos que neste caso, a falta de organização da Defensoria Pública pelo Estado não pode implicar na responsabilidade do advogado, pois, do contrário, haveria um incentivo à produção da omissão inconstitucional do ente federativo. Cremos que aqui cabe até a notificação judicial ao governador do Estado omisso no sentido deste determinar em certo prazo a indicação de defensor que patrocine a defesa do réu na comarca aonde não se tem estruturada e organizada defensoria pública, sob pena do crime de desobediência do chefe do executivo ou eventualmente do secretário responsável também notificado. Neste diapasão, seria de bom alvitre que, toda vez que o juiz se valesse de defesa dativa por falta de defensoria pública organizada na comarca, o órgão jurisdicional notificasse a governador do Estado desta omissão constitucional, a título do próprio aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, que exige obrigatoriamente o zelo pela paridade de armas no processo penal.
A menção do artigo 264 do CPP tem por objetivo mostrar que o referido dispositivo ordinário sofreu um profundo influxo da força normativa da Constituição de 1988, tornando a sua aplicação incompatível com esta nova ordem constitucional, bem como revogado pelo atual Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994). Neste sentido, o mesmo influxo normativo constitucional e infraconstitucional imposto ao artigo 264 do CPP, produzido pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994) aplica-se inteiramente ao artigo 265 do mesmo codex, fazendo com que a aplicação de multa ao advogado (defensor), em razão do suposto “abandono” (rectius, ausência à audiência judicial designada), por quem não seja o juiz natural do processo ético e disciplinar seja inconstitucional e ilegal. Ou seja, o legislador processual da Lei nº 8.906/1994, ao se debruçar sobre o artigo 265 do CPP, não levou em consideração o influxo normativo da Constituição da República de 1988 e do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil de 1988, que estabeleceram, um desenho próprio para o processamento e aplicação de sanções aos advogados quando eventualmente violarem disposições de nítido caráter ético, como é o caso do denominado “abandono” no processo penal pelo defensor.
Por derradeiro, olvidou o legislador da Lei nº 11.719/2008, ao dar nova redação ao artigo 265 do CPP, que já havia no ordenamento brasileiro, através do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), a previsão de multa, bem como de outras sanções ali previstas,i ao advogado que tivesse provada contra a sua pessoa alguma forma de violação de ética na condução dos interesses do seu cliente. Só que a aplicação das mencionadas sanções dar-se-á mediante o devido processo administrativo perante o Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil e dosada proporcionalmente segundo a gravidade da violação.

Cunha e Silva Neto é Bacharel em Direito pela UFRJ, mestre em Direito Público pela UGF-RJ, pós-graduado pela PUC-PR, advogado e professor universitário

Benhur dos Santos Cavalcanti é Bacharel em Direito pela PUC-RJ e advogado militante na cidade do Rio de Janeiro